Gastão era perfeito

Também em memória da Adelina, que nos vendia às escondidas este e tantos outros discos. Quem passou por Coimbra sabe de quem estou a falar.

É a minha favorita, hoje que também é dia de cada um falar da sua. Não me perguntem porquê, quando me apaixono por um poema, uma música, uma canção ou uma mulher nascem mistérios que prefiro nem desvendar.  Aqui só falta a mulher mas sobra a velha tradição da cantiga de escárnio e maldizer, superiormente reinventada.

Faz parte do Venham Mais Cinco, em termos de sonoridade e  maravilhamento poético o mais elaborado dos trabalhos do Zeca, com um respirar que logo a seguir seria impossível, tanto ao Zeca como ao José Mário Branco, o senhor que em português inventou a palavra produção.

Gastão era perfeito
Conduzido por seu dono
Em sonolências afeito
Às picadas dos mosquitos

Era Gastão milionário
Vivia em tapetes raros
Se lhe viravam as costas
Chamava logo a polícia

Em crises de malquerência
Vinha-lhe o gosto pela soda
Mas ninguém se abespinhava
Que enviuvasse às ocultas

Nem Gastão se apercebia
De quanto a vida o prendara
Entre estiletes de prata
E colchas de seda fina

Gastão era deste jeito
Fazia provas reais
Gastão era um parapeito
De Papas e Cardeais

Vinha-lhe só por fastio
Nos tiquetaques da vida
Um solene desfastio
Pela mãe que era entrevada

Mandava bombons recados
Por mensageiros aflitos
Não fora Gastão dos fracos
E já seria ministro

Conheci-o em Alverca
Num bidon de gasolina
Tinha um pneu às avessas
Mas de asma é que sofria

No solestício de Junho
A quem o quisesse ouvir
Dizia que era sobrinho
Do Fernão Peres de Trava

Querem saber de Gastão?
Vão ao Palácio da Pena
Usa agora capachinho
E gosta de codornizes

Gastão era perfeito
Conduzido por seu dono
Em sonolências afeito
Às picadas dos mosquitos

Tem um sinal que o indica
Como o mais forte Doutor
Espeta o dedo no queixo
E diz que é Nosso Senhor

Comments

  1. António Duarte says:

    Uma das músicas em que mais vem ao de cima a veia surrealista do Zeca…
    Que acho fascinante, apesar de nunca ter morrido de amores pelo surrealismo…

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