Sou o meu próprio Comité Central

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Excertos da entrevista de José Afonso ao jornal «Sete» de 22 de Abril de 1980

Sobre a regularidade de publicação de discos:
«Houve só uma época, logo após o 25 de Abril, em que como sabes não tínhamos mãos a medir, e em que isso aconteceu. Foi uma fase de expectativa, em que eu reflecti sobre o que devia fazer, se deveria ir para o ensino, se a minha função de cantante se justificava no novo processo que estávamos a viver. Pus mesmo a hipótese de me afastar, porque cantores de origem populares seriam vozes muito mais representativas do que as nossas e o processo nos iria ultrapassar. O certo é que fui extraordinariamente solicitado, eu e os meus colegas, de tal maneira que fiquei completamente «nas lonas».»

Sobre a imagem de radicalismo que transmitiu na fase pós-25 de Abril:
«Isso foi uma fase que se desculpa, que quanto a mim é um reflexo do próprio processo, apareceram coisas diferentes porque apareceram realidades diferentes e um público também, pelo menos em superfície e em quantidade, diferente. Dantes eu cantava para Assembleias Populares, mas muito mais restritas. No final do fascismo era-me mesmo já praticamente impossível cantar em público e nos dois últimos anos eu vivia quase só entregue a uma tarefa de propaganda e de agitação, difundia livros e panfletos, de apoio aos presos políticos, etc.»

Sobre a censura nos últimos tempos do Marcelismo:
«Sim, e no final acabei por ser preso [depois de fazer uma sessão num pinhal para tentar escapar à Polícia]. Com o 25 de Abril surgiu uma oportunidade enorme para chegarmos às fábricas, aos locais de trabalho, ir às aldeias onde havia comissões de moradores que estavam a fazer o seu caminho público, o seu fontanário, etc.. Participei muito directamente nesse processo, eu e outros cantores que tiveram uma actividade incrível nesse aspecto.»

Sobre as discordâncias em relação ao PCP 

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Não canto porque sonho


Noiserv  [tema de Fausto Bordalo Dias – com José Afonso -, do álbum P’ró que der e vier, 1974]
Letra de Eugénio de Andrade

Como se faz um canalha

Excelente actualização da não menos excelente cantiga de José Afonso.

Zeca

No aniversário do seu falecimento, a vossa atenção para esta introdução à cantiga Papuça. Em particular para quem anda por aí a caluniar José Afonso, um homem que sempre se afirmou revolucionário.

1964: Zeca e Paredes em Grândola, Alentejo

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«(…) aquele concerto em Grândola foi uma data marcante para José Afonso. Foi ali que conheceu Carlos Paredes e se impressionou com o seu talento.. (…)» Mário Lopes, no Público em 2010

O país vai de carrinho

Uma afro-cantiga do José Afonso, relembrada pelo Samuel, e que dedico ao 31 da Armada que ficou ontem sem herói. Os meus sentimentos.

Deixo também o poema, para quem tiver a placa de som marada. [Read more…]

Alegre com Dylan por um Mundo livre

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«Manuel Alegre ao lado de Bob Dylan, John Lennon e Leonard Cohen» anunciou hoje a Leya, feliz da vida por Alegre passar a estar ao lado de tão notáveis poetas (e Chico Buarque também lá está) no âmbito da antologia italiana Canto Por Um Mundo Livre. Marketing é marketing (essa ciência que é um remédio santo) mas talvez José Afonso fosse realmente o único nome que faria sentido nessa representação portuguesa de grandes poetas/músicos. Alegre é doutra guerra.

25 Poemas de Abril (XXIV)


Grândola, Vila Morena

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena [Read more…]

25 Poemas de Abril (XXI)


Vampiros

No céu cinzento sob o astro mudo
Batendo as asas Pela noite calada
Vêm em bandos Com pés veludo
Chupar o sangue Fresco da manada

Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia As portas à chegada
Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada [Bis] [Read more…]

25 Poemas de Abril (VIII)

Cantar Alentejano from Gustavo Imigrante on Vimeo.

Um poema de Jose Afonso, “ilustro-animado-analogicamente”,
por Gustavo Imigrante.
Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer

Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou

Acalma o furor campina
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou

Aquela pomba tão branca
Todos a querem p’ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti

Aquela andorinha negra
Bate as asas p’ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar

José Afonso: A busca da utopia


A 28 de Fevereiro de 1987, 5 dias depois da morte de José Afonso, José A. Salvador publica uma longa biografia do cantor no «Expresso». Aqui fica:

«Mandei-lhes um telegrama. Podes pôr isso lá no jornal?»
Olhei José Afonso ainda surpreso pelas suas palavras ciciadas quando o visitei em finais de Junho de 1986. A doença avançava a olhos vistos e fitei-o de novo sem perceber totalmente o alcance da sua pergunta.
Instantes depois tudo se esclarecia: o cantor desejava publicitar que enviara ao Presidente da Guiné-Bissau Nino Vieira um telegrama de apoio para que não fossem fuzilados os seis condenados à morte envolvidos no caso Paulo Correia. Ao tomar esta atitude, José Afonso invocou razões de humanidade e as tradições humanísticas do PAIGC fundado por Amilcar Cabral.
Mesmo aqui, na aparente dissonância em relação ao Partido no poder em Bissau, José Afonso não questionava o processo político guineense nem o apoio que mantinha em relação a todos os movimentos de libertação africanos das ex-colónias portuguesas.
De resto, a realidade colonial que conheceu de perto, sobretudo em Moçambique, foi marcante na sua formação política e até na sua música.
Sempre de costas para o poder, apenas se lhe reconhecem dois períodos, ou situações, em que lhe concedeu o seu apoio: [Read more…]

Gastão era perfeito

Também em memória da Adelina, que nos vendia às escondidas este e tantos outros discos. Quem passou por Coimbra sabe de quem estou a falar.

É a minha favorita, hoje que também é dia de cada um falar da sua. Não me perguntem porquê, quando me apaixono por um poema, uma música, uma canção ou uma mulher nascem mistérios que prefiro nem desvendar.  Aqui só falta a mulher mas sobra a velha tradição da cantiga de escárnio e maldizer, superiormente reinventada.

Faz parte do Venham Mais Cinco, em termos de sonoridade e  maravilhamento poético o mais elaborado dos trabalhos do Zeca, com um respirar que logo a seguir seria impossível, tanto ao Zeca como ao José Mário Branco, o senhor que em português inventou a palavra produção.

Gastão era perfeito
Conduzido por seu dono
Em sonolências afeito
Às picadas dos mosquitos [Read more…]

O que faz falta

Grândola Vila Morena (Filhos da Madrugada)

O projecto Filhos da Madrugada foi a melhor homenagem feita até hoje à música de José Afonso e também ao homem que a criou. O melhor compositor português do séc. XX passou assim a outra geração, construindo-se a imortalidade.

É tempo de um Filhos da Madrugada II passar o testemunho à geração seguinte. Grupos e cantores para isso não faltam (imagino por exemplo o David Santos / Noiserv a pegar num “Se o Amor não Engana”…). Que as editoras não estejam para aí viradas, pois pois, compreendo. Espero que o obstáculo não venha de quem detêm os direitos do autor José Afonso (e que ainda o ano passado proibiu pelo menos uma versão). Sim, isto é verdade, embora no caso que aqui será contado um destes dias os Vampiros tenham virado Abutres, e ficámos todos a ganhar.

Seguem-se alguns vídeos com músicas dos Filhos da Madrugada que demonstram como no youtube o Zeca nunca morreu.

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Hoje dá na net: Sempre Abril (Gala de homenagem a Zeca Afonso)

Gala de homenagem a Zeca Afonso, co-produzida pola TVG (Televisão da Galiza) e a RTP.

Silvia Alberto co-apresenta, com o galego Carlos Blanco, o espectáculo que assinala a Revolução dos Cravos e presta homenagem a Zeca Afonso. “Sempre Abril”, assim se designa a gala realizada no Paço da Cultura de Pontevedra, conta com as participações de Sérgio Godinho, Dulce Pontes, Vitorino, Janita Salomé, João Afonso, Zeca Medeiros, Tito Paris, Luís Pastor, Trexadura, Victor Coyote, Xico de Carino e o grupo Faltriqueira.

Veja depois do corte a ligação para os outros vídeos sobre José Afonso: [Read more…]

Hoje dá na net: Zeca Afonso – Ao Vivo no Coliseu, 1983

Em 29 de Janeiro de 1983 realiza-se o espectáculo no Coliseu com José Afonso já em dificuldades. Participam Octávio Sérgio, António Sérgio, Lopes de Almeida, Durval Moreirinhas, Rui Pato, Fausto, Júlio Pereira, Guilherme Inês, Rui Castro, Rui Júnior, Sérgio Mestre e Janita Salomé.

Este a RTP lá teve de gravar. Sabia-se que a doença era irreversível e já parecia mal. Não havia um único grande concerto de José Afonso gravado pela televisão portuguesa.

Hoje dá na net: Zeca Afonso – Maior que o pensamento

(1ª parte)

Produção: Nanook, Realização: Joaquim Vieira Tit. Original: «(ZECA AFONSO)»
Origem: Portugal – 2011

Série documental em três episódios sobre José Afonso com assinatura de Joaquim Vieira.

“Maior que o Pensamento” é o título de um documentário em três partes acerca da vida e da obra do poeta, compositor e intérprete José Afonso, o mais conhecido autor da chamada canção de intervenção portuguesa, movimento do qual se pode aliás dizer que foi fundador e líder (embora de maneira informal).

(…) O documentário recolhe muitas dezenas de testemunhos de pessoas que conheceram José Afonso e com ele colaboraram, desde familiares e amigos a músicos de várias nacionalidades. Imagens de atuações de José Afonso (algumas inéditas em Portugal, como na Alemanha em 1963) completam este exaustivo trabalho sobre um criador que suplantou em muito a estrita esfera do seu posicionamento ideológico, tornando-se num dos mais originais e destacados criadores do seu país no século XX. Ao longo do documentário, podem ser ouvidas algumas das mais significativas canções da autoria de José Afonso, interpretadas pelo próprio.

(…) “Maior que o Pensamento”, uma produção Nanook, é um documentário de Joaquim Vieira, com edição de Aníbal Carocinho, direção de produção de Lila Lacerda, consultoria histórica de Irene Flunser Pimentel e consultoria de Maria Helena Afonso dos Santos.

Ficha RTP completa

2ª e 3ª partes [Read more…]

Homenagem a Jean Ferrat – C’est beau la vie (Memória descritiva)

Jean Ferrat era o nome artístico do cantor francês Jean Tenenbaum, nascido em 26 de Dezembro de 1930 em Vaucresson (Hauts-de-Seine). Morreu ontem com 79 anos, em Ardèche, uma localidade no sul de França. De origem judaica, era o mais novo de quatro irmãos. Seu pai, nascido na Rússia, foi deportado durante a guerra para Auschwitz e ali morreu. Compreende-se melhor através deste pormenor biográfico o sentimento com que Ferrat canta Nuit et Brouillard.

Obrigado a abandonar os estudos para sustentar a família, actuou nos anos 50 em pequenos cabarés de Paris. Cantou versos de Louis Aragon e canções dedicadas a Neruda e a Lorca. Os seus temas eram, geralmente, de índole política. Foi com Nuit et Brouillard que o êxito chegou para Ferrat, pois recebeu o Grande Prémio do disco de 1963 com esse tema sobre os campos de extermínio. Nesse disco, incluía-se C’est beau la vie, com que antecedo as palavras deste texto. [Read more…]

Poemas com história: Pedreira dos Húngaros

Na sequência da Revolução de Abril, o projecto SAAL tentou resolver o problema dos bairros de lata que enxameavam as cinturas industriais de Lisboa, Porto e Setúbal, principalmente. Hoje, os bairros de lata foram em parte erradicados, mas substituídos por outra dramática tipologia – a dos bairros degradados. Há, entre uma coisa e outra, diferenças quantitativas e qualitativas. Porém, a questão central mantém-se, porque se é verdade que, tal como acontecia nos bairros de lata, os bairros degradados abrigam muita marginalidade (roubo organizado, tráfico de droga, prostituição…), paredes meias com essa marginalidade, convivem pessoas honestas, que trabalham ou estão desempregadas, e que vêem os seus filhos crescer num ambiente que pode, à partida, condicionar negativamente o trajecto das suas vidas.

 

Este poema foi inspirado no trabalho  voluntário, de levantamento, sobretudo, que, prévio ao projecto SAAL, desenvolvi em bairros da periferia da grande Lisboa – Pedreira dos Italianos, Pedreira dos Húngaros (que chegou a ter 30 mil habitantes), Fim do Mundo, Marianas… Ali arranjei grandes amigos e como feito de que me orgulho consegui, num desses bairros, no do Fim do Mundo, perto do Estoril, sentar à mesma mesa, à volta de umas cervejas e de um qualquer petisco, os líderes das comunidades cigana e cabo-verdiana (em guerra permanente). Desconfiados, preconceituosos, o convívio não começou bem, pois desataram a desfiar recriminações, mas diversas imperiais depois, já se estavam a tratar por tu e a falar normalmente.

Um dia um amigo da Pedreira dos Húngaros, onde hoje se ergue o bairro de Miraflores, um cabo-verdiano que gostava muito de ler (sobretudo boa literatura policial), levou-me à sua barraca. Chovia torrencialmente e, indiferentes à chuva, as crianças brincavam alegremente esparrinhando a água nas poças. O Miguel apresentou-me a mulher e os filhos pequenos e, depois de eu ter visto as terríveis condições em que viviam, teve este desabafo: – Estás a ver, Carlos, sou pedreiro, faço casas para os outros e moro, com a mulher e os filhos, numa barraca. De facto ele era operário da construção civil e esta frase tão simples, além de desencadear mais um dos meus poemas panfletários (escrito em 1975, inédito até hoje), valeu-me por mil lições de economia política.

Pedreira dos Húngaros

A pedreira é chaga que te arde na cintura,

cidade plantada a ocidente, em carne viva,

mar de lama, rosa de pus,  gaivota esquiva –

pedreira – adaga que apunhala a noite escura.

 

É uma face turva, a faca curva que perdura,

em ti, urbe prisioneira, da negra luz  cativa.

É  bandeira da morte que drapeja altiva

a norte da verdade, em ti, cidade-desventura.

 

Sinto vidro moído à deriva num pulmão:

num labirinto percorrido por fera à solta.

procuro em vão saída para a claridade.

 

Morde-me a memória a malsã recordação

da realidade que em ti arde á nossa volta.

Pedreira, morte em flor na cintura da cidade.

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A célebre canção do Zeca, «Os Índios da Meia Praia», baseia-se também num episódio do projecto SAAL. Vamos ouvir mais, uma vez:

 

 

80 anos de Zeca Afonso

 

 

 

 

A máquina do tempo: Nazim Hikmet

 

 

Em 1943, em plena Guerra Mundial, um jovem investigador turco chegou a uma aldeia isolada numa região montanhosa e descobriu que as canções de um grande poeta que ali recolheu, as quais «enterneciam as mais altas montanhas e os mais duros rochedos», supostamente um poeta popular muito antigo, eram afinal de um poeta contemporâneo. No entanto, os camponeses afirmavam que já seus pais e avós sabiam aquelas poesias. Como podia ser? Sem jornais, sem rádio, com a povoação mais próxima a 14 horas de marcha, como chegaram os versos de Hikmet a tão recôndito lugar e se instalaram de maneira tão profunda entre os hábitos ancestrais dos aldeãos?

 

Nazim Hikmet Ran nasceu em 20 de Novembro de 1901 e morreu em 3 de Junho de 1963. Foi o mais importante poeta turco do século XX. Nasceu em Salónica, na altura integrada no Império Otomano, e foi membro do TKP (Partido Comunista da Turquia), sendo desde muito jovem perseguido pela polícia do sultão. Entre 1922 e 1925, esteve exilado na União Soviética, completando os seus estudos em Moscovo. O advento da Revolução turca de Mustafa Kemal Atatürk, em 1923, não melhorou a situação do poeta, mantendo-lhe a condição de proscrito. Só este ano (5 de Janeiro de 2009), quase 46 anos após a sua morte, o governo de Ancara aboliu por decreto a decisão que em 1951 retirou a nacionalidade turca ao grande poeta.

Mas voltemos a 1943 e ao trabalho do folclorista universitário.

A aldeia a que o jovem investigador acabava de chegar, era um aglomerado de quarenta casebres, com tectos de terra batida. Os aldeãos viviam em condições de extrema pobreza. Como já disse, a povoação mais próxima ficava a 14 horas de marcha, por acessos difíceis, estreitos carreiros talhados no flanco das rochas. Na aldeia, uma rapariga disse saber «belas canções de um grande poeta, com força para «enternecer as mais altas montanhas e os mais duros rochedos». E a jovem começou a recitar versos que o investigador se apressou a anotar no seu bloco de apontamentos.

Ao cabo de momentos, foi tomado de uma grande surpresa – os poemas que a camponesa sabia de cor, eram versos de Nazim Hikmet. – Quem foi o poeta que compôs estas canções? – perguntou aos aldeãos. – «Foi um grande poeta» – responderam -«Os seus versos são mil vezes por nós repetidos. Os nossos pais e os nossos avós já os cantavam também. Vieram-nos dos nossos antepassados. Como podemos saber quem os escreveu?»

O jovem investigador ficou estupefacto. Como era possível que os poemas de Nazim Hikmet, escritos poucos anos antes, tivessem podido chegar até àquela longínqua aldeia da Turquia asiática e enraizar-se no coração dos seus habitantes, misturando-se com as odes dos bardos tradicionais da Turquia – o legendário Korkout e o sublime Younous? Um dos poemas recitados pela jovem aldeã tinha sido escrito escassos anos antes numa cela da prisão de Brousse. Como era possível Hikmet misturar a sua voz com as obras dos velhos cancioneiros populares?

Voltou por diversas vezes à aldeia para tentar decifrar o enigma, mas recebeu sempre a mesma resposta: «- É um grande poeta, um grande homem. Recebemos os seus versos dos nossos pais, que os receberam dos seus pais…» Nunca conseguiu descobrir como os poemas de Hikmet viajaram até àquela aldeia e se incrustaram entre a poesia ancestral.

Devo acrescentar que a modernização da língua turca muito deve a Hikmet. Os grandes mestres estavam mergulhados num total esquecimento. Ninguém descobrira que o turco podia ser uma linguagem poética, literária no melhor sentido e, ao mesmo tempo, terna e vigorosa. Foi Hikmet que lhe conferiu essa característica ao abandonar cânones empolados, só entendidos por eruditos, e ao adoptar a linguagem do povo, vinculada à sua realidade quotidiana, ao trabalho, à rudeza da vida.

O poeta em particular, e o escritor em geral, têm de estar no cerne da vida. Hikmet compreendeu isso e rapidamente ganhou um lugar no coração do seu povo, lugar mais importante do que mil cadeiras de academias. Como um subtil, mas impetuoso, lençol subterrâneo de água, impregnou a alma do povo turco. Esta a única explicação para o folclorista surpreendido, sem compreender como é que aquela gente ignorante, analfabeta na sua maioria, recitava poemas que estavam proibidos. Por aqueles anos 40, a posse de um texto de Hikmet dava direito a uma pena de cinco a dez anos de prisão, a sevícias e a tortura.

Numa outra escala, numa outra realidade, apesar de tudo menos dramática, não foi isto que se passou em Portugal com as canções de José Afonso? Muitas pessoas sem cultura ou consciência política cantavam as suas canções e recitavam os seus versos. Por exemplo, a sua canção sobre Catarina Eufémia valeu por milhões de panfletos e jornais clandestinos. Quantas mulheres, entre os 30 e os 40 anos, se chamam hoje Catarina? Homenagem, em muitos casos inconsciente, de seus pais ou padrinhos à ceifeira assassinada no Baleizão.

Nem a repressão policial, nem os elitistas preconceitos intelectuais, conseguem fechar o coração de um povo à poesia, à música, à arte com que a sua alma se identificar. Muito daquilo do que  hoje se celebra como grande literatura, por exemplo, morrerá logo que se extingam os temporais conceitos que servem de pedestal a essa suposta grandeza. Só sobreviverá o que for genuíno e intemporal. Foi assim com Nazim Hikmet. E, entre nós, Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões, Fernando Pessoa, não terão, também eles, descoberto a subtil chave para os nossos corações? Será por isso que perduram? Acho que sim.

 

 

 

Os Índios da Meia Praia

A determinada altura tentou-se uma espécie de “reabilitação” do Zeca, que não seria apenas um cantor de intervenção, que as suas canções de amor, por exemplo, seriam recicláveis, uma ladainha que esquecia o facto de estarmos em presença de um poeta maior, e sobretudo de alguém capaz de transformar qualquer estória numa grande canção.

Mesmo a mais “datada” das suas cantigas vale por si, em qualquer dia da semana, em qualquer ano de um século, em qualquer década de um milénio.

Os Índios da Meia Praia, escrita para o filme de Cunha Teles, onde se narra como o povo fez de um quase deserto um sítio para viver, antes de dela fazerem o actual supermercado para turista curtir, é o melhor exemplo disso.

Nela pegaram as Vozes da Rádio e também Dulce Pontes, popularizando uma cantiga que verdade se diga quando foi lançada nem teve um sucesso assinalável.

Claro que se trata de uma cantiga de amor. De amor à humanidade e à justiça. E “quem diz o contrário é tolo“.

Segue a letra completa, parcialmente cantada na versão original em disco, e duas dessas versões.

Aldeia da Meia-Praia

Ali mesmo ao pé de Lagos

Vou fazer-te uma cantiga

Da melhor que sei e faço

De Monte-Gordo vieram

Alguns por seu próprio pé

Um chegou de bicicleta

Outro foi de marcha a ré

Houve até quem estendesse

A mão a mãe caridade

Para comprar um bilhete

De paragem para a cidade

Oh mar que tanto forcejas

Pescador de peixe ingrato

Trabalhaste noite e dia

Para ganhares um pataco

Quando os teus olhos tropeçam

No voo duma gaivota

Em vez de peixe vê peças

De ouro caindo na lota

Quem aqui vier morar

Não traga mesa nem cama

Com sete palmos de terra

Se constrói uma cabana

Uma cabana de colmo

E viva a comunidade

Quando a gente está unida

Tudo se faz de vontade Tudo se faz de vontade

Mas não chega a nossa voz

Só do mar tem o proveito

Quem se aproveita de nós

Tu trabalhas todo o ano

Na lota deixam-te mudo

Chupam-te até ao tutano

Chupam-te o couro cab’ludo

Quem dera que a gente tenha

De Agostinho a valentia

Para alimentar a sanha

De esganar a burguesia

Diz o amigo no aperto

Pouco ganho, muita léria

Hei-de fazer uma casa

Feita de pau e de pedra

Adeus disse a Monte-Gordo

(Nada o prende ao mal passado)

Mas nada o prende ao presente

Se só ele é o enganado

Foram “ficando ficando”

Quando um dia um cidadão

Não sei nem como nem quando

Veio à baila a habitação

Mas quem tem calos no rabo

– E isto não é segredo –

É sempre desconfiado

Põe-se atrás do arvoredo

Oito mil horas contadas

Laboraram a preceito

Até que veio o primeiro

Documento autenticado

Veio um cheque pelo correio

E alguns pedreiros amigos

Disse o pescador consigo

Só quem trabalha é honrado

Quem aqui vier morar

Não traga mesa nem cama

Com sete palmos de terra

Se constrói uma cabana

Eram mulheres e crianças

Cada um c’o seu tijolo

“Isto aqui era uma orquestra”

Quem diz o contrário é tolo

E toda a gente interessada

Colaborou a preceito

– Vamos trabalhar a eito

Dizia a rapaziada

Não basta pregar um prego

Para ter um bairro novo

Só “unidos venceremos”

Reza um ditado do Povo

E se a má lingua não cessa

Eu daqui vivo não saia

Pois nada apaga a nobreza

Dos índios da Meia-Praia

Foi sempre a tua figura

Tubarão de mil aparas

Deixar tudo à dependura

Quando na presa reparas

Das eleições acabadas

Do resultado previsto

Saiu o que tendes visto

Muitas obras embargadas

Quem vê na praia o turista

Para jogar na roleta

Vestir a casaca preta

Do malfrão capitalista

Mas não por vontade própria

Porque a luta continua

Pois é dele a sua história

E o povo saiu à rua

Mandadores de alta finança

Fazem tudo andar pra trás

Dizem que o mundo só anda

Tendo à frente um capataz

E toca de papelada

No vaivém dos ministérios

Mas hão-de fugir aos berros

Inda a banda vai na estrada

Eram mulheres e crianças

Cada um c’o seu tijolo

“Isto aqui era uma orquestra”

Quem diz o contrário é tolo