SNS e Exploração Capitalista da Saúde (ECS)

A destruição do Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um facto e pode considerar-se um crime de traição, um crime de lesa-Pátria que ficará na História deste Portugal de quase mil anos.

Tudo isto pela força-fraqueza de políticas de direita, muitas vezes ditas socialistas, ignorantes, insensíveis, medíocres, incompetentes e tantas vezes corruptas, e com a falta de moral e desprezo social indispensáveis ao dobrar de joelhos perante os poderes diabólicos que as comandam.

O embrião do SNS começou a gerar-se há meio século, quando Miller Guerra era Bastonário da Ordem dos Médicos. Posteriormente, o Relatório das Carreiras Médicas foi um passo gigante no caminho do que, uma década depois, se haveria de tornar num dos mais modernos serviços de saúde pública. Apresentado por António Arnaut, o diploma criador do SNS foi aprovado no parlamento. Em trinta anos, o SNS transformou a saúde em Portugal, conseguindo aproximar este país dos países mais avançados do mundo em termos de saúde pública.

Com o surgimento de uma espécie de pneumónica universal, a que se deu o nome de crise, isto é, um buraco negro cavado nos pulmões da humanidade pelas garras mais agressivas e execráveis do capitalismo, uma onda de políticos medíocres, vendidos, irresponsáveis, comprometidos com o que há de pior em termos de concepção de uma sociedade justa, já marinados e fermentados em vários cargos governativos, aspergidos pela água benta das presidências da República, passaram a considerar a área da saúde, uma área de desperdício. Sem qualquer pudor, quase analfabetos em termos do que é o profundo conhecimento humano e social, sem ponta de arrependimento ou vergonha, começaram a atirar a pedra e a esconder a mão, a minar e a subverter, primeiro à socapa e depois à bruta e às escâncaras, uma conquista das mais honrosas e louváveis do 25 de Abril. A sua miopia geneticamente irreversível, apenas consegue enxergar a destruição deste imenso património de experiência, competência e dignidade, como valiosa prenda a entregar em bandeja de prata à maligna voragem privada dos seus patrões, pois é sabido que a saúde já tem um volume de negócios superior ao do petróleo.

O SNS e a ECS são duas realidades perfeitamente distintas e de natureza social completamente diferente. O SNS, com todas as suas insuficiências, imperfeições e carências, assenta em bases que lhe conferem um amplo reconhecimento e um poderoso valor no contexto social. A gratuitidade, a igualdade dos cidadãos perante a lei e os direitos aos cuidados de saúde, seja qual for o estrato social, a sabedoria e a competência, a experiência, a tecnologia avançada, a humanidade, a solidariedade e o sentido social seriam a mais forte garantia de um futuro cada vez melhor, mais aperfeiçoado e promissor, mais equilibrado e desenvolvido, se, para tal, houvesse vontade política. Mas a vontade política não só não existe, como existe desde sempre, dentro do emparedado espírito das forças de direita, uma permanente vontade de o destruir.

A base fundamental em que assenta a ECS é o lucro. Por isso, nada é gratuito na ECS. Os cidadãos não são todos iguais, havendo uma medicina para ricos e uma medicina para pobres. Por isso a ECS é uma fábrica de exames e intervenções em que o doente não passa de matéria-prima. A frequente ausência de uma profunda avaliação clínica, que não dá dinheiro, e a falta de critérios rigorosos, são um caminho fácil para toda a espécie de iatrogenias, quer médicas, cirúrgicas, farmacológicas, quer económicas, sociais e psicológicas. Na ECS a humanidade, a sensibilidade, a solidariedade e o sentido social são aspectos circunstanciais, pois não se inscrevem nas linhas que estruturam a natureza da exploração capitalista, seja em que campo for. Embora a tecnologia, por vezes mais avançada, exista e seja indispensável no SNS, na ECS ela constitui uma pedra mais notoriamente fundamental, não só por imposição da concorrência e por ser indispensável a uma fábrica de lucro, mas também para tentar suprir, muitas vezes, a deficiente formação clínica dos seus profissionais, principalmente quando não são pescados no SNS. A sabedoria, a competência e a experiência não existem como existem no SNS, pois sofrem inúmeras mutações desviantes por exigência dos meandros do sistema, que as anulam e afastam progressivamente da competência-mãe, a verdadeira formação clínica do médico cientista e ser humano, só possível com o desenvolvimento profissional contínuo inerente a Carreiras Médicas de excelência e pós-graduações exemplares. Só evoluindo por avaliação degrau a degrau, mediante resultados de um profundo trabalho humano e científico se pode conquistar a formação indispensável à qualidade dos cuidados de saúde e à garantia dos doentes, nesta que deveria ser uma das mais dignas, responsáveis e honrosas profissões.

Por isso, cai bem ouvir uma voz dentro do sistema, como a de Paulo Mendo, quando reconhece que o sector público garante e paga, e o sector privado executa e mete a conta. Também o Dr. João de Deus, com a autoridade de Presidente da Board da AEMH – Associação Europeia de Médicos Hospitalares – organização que congrega os médicos hospitalares de todo o espaço europeu nos diz, mais ou menos nestes termos: Temos os outros países a querer seguir o nosso modelo, por reconhecerem a inegável garantia de qualidade que o sistema de Carreiras acarreta, e temos o nosso Governo a querer destrui-lo. É um paradoxo termos um sistema elogiado a nível europeu e que funciona bem, a ser atacado desta forma. Quando a qualificação médica portuguesa, quer pré quer pós-graduada, tem sido reconhecida como uma das melhores em termos internacionais, surge a tentativa de destruição do sistema de Carreiras Médicas com os concursos de contratação de médicos à hora e ao mais baixo preço, sem qualquer controle em termos de qualidade.

Terrorismo, verdadeiro terrorismo político e social, acrescento eu. A ECS é uma parte integrante do poder desumano que se apoderou do mundo, esgaravatando a miséria, a pobreza e a angústia de milhões de cidadãos sofredores e infelizes, como se de uma mina de ouro se tratasse.

Termino com as palavras de um colega, João Miguel Nunes “Rocha”, transcritas da última Revista da Ordem dos Médicos: “…do pouco de bom que resta, atiraram-se agora ao SNS… e depois de ferrarem os dentes querem desenterrar tesouros da doença, arrancar dobrões de ouro às terapêuticas, espremer a angústia em jorros de euros reluzentes, depenicar na agonia e na dignidade.”

NOTA: Aproveito para deixar aqui, bem expressa e com conhecimento de causa, a minha admiração pelo Serviço de Cardiologia do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, um exemplo, entre outros, da excelência que pode acontecer dentro do SNS. Por ali têm passado legiões de doentes, roubados à dor e à morte por força da competência, da sabedoria clínica, da tecnologia, da humanidade e do carinho, virtudes e qualidades testemunhadas por inúmeros pacientes.

Comments

  1. Amadeu says:

    “É um paradoxo termos um sistema elogiado a nível europeu e que funciona bem …”

    Há anos, quando uma vaga de calor matou milhares de idosos franceses, à noite, no meu quarto de hotel, fui surpreendido no horário nobre dum noticiário dum canal de televisão.
    O SNS português era elogiado, o apoio domiciliário era enaltecido, o exemplo português era detalhado para espanto meu e vergonha dos franceses.

    Obrigado pelo teu magnífico texto.

  2. Luís Teixeira Neves says:

    Mais do que ser contra a extinção do SNS, sou contra a “venda” do SNS à indústria farmacêutica. E esta já foi feita há…

  3. Sarah Adamopoulos says:

    É isso sem tirar nem pôr – tratam a saúde (e em sentido lato a Vida das pessoas) como mercadoria e apenas. Nenhuma cultura humanista, nenhum desejo de fazer bem (entenda-se com o coração humano), nenhum outro objectivo que não seja o de aceitar, em nome de um entendimento profundamente errado da economia compromissos comprovadamente *destruidores* e de ter poder, de exercê-lo, de acumulá-lo em todas as suas formas (dinheiro, influência, mobilidade social, carros, liquidez, etc) com o fim certo absurdo de morrerem materialmente mais ricos, deixando aos seus descendentes pequenas, médias e grandes fortunas que perpetuam as desigualdades na sociedade portuguesa e esses valores abjectos que enumerou

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