«Serafim,
Eu tenho lume no olho. Tenho-te dado em muita malhoada e feito vista grossa para não dar estalada. Ora agora que andas à gandaia com as vizinhas por Penafiel, e a moura de trabalho que fique para aqui como negra ao canto da cozinha, isso é que não senhores. Vai para onde essa bigorrilha, que a seu tempo terás o pago. Eu retiro-me desta casa com o meu oiro e não te fico a dever nada. Não me procures, se não quiseres sofrer uma desfeita. Em tão bom dia que eu me vou embora! Se te esperasse em casa, punha-te essas orelhas compridas como a vista, e talvez o caso passasse a mais, e eu de todo em todo me botasse a perder contigo, que és o rebotalho dos homens!!! Por não saber ler nem escrever, pedi ao teu caixeiro António que esta por mim fizesse. Ele teve dor de mim e também me acompanhou. Adeus por secula seculorum sem fins.
Josefa Teixeira»
Ramalho Ortigão, Uma visita de Pêsames, in Histórias Cor-de-Rosa
>>>>
Não te cures, não
vais ver onde vais parar
não vás ao médico, não
depois
não te venhas queixar
>
Não te cures, não
vais ver onde vais parar
não vás ao médico, não
depois
não te venhas queixar
>>
Tu dás ares
de filósofo barato
quando tu és simples
e cheio de portantos
Então para quê
tanto aparato
Não é defeito
é feitio dizes tu
mas sabes
que os teus encantos
vêm sempre à baila
quando te põem a nu
>>>>
Não te cures, não
vais ver onde vais parar
não vás ao médico, não
depois
não te venhas queixar
Não te cures, não
vais ver onde vais parar
não vás ao médico, não
depois
não te venhas queixar
>>
Tu és o
delicadinho da tua rua
e também
o complicadinho da Silva
e andas sempre na Lua
E à miúda
de bochechas risonhas
dás-lhe um sopro
um sopro do teu ar
depois dizes que andas
nas lonas
>>>>
Não te cures, não
vais ver onde vais parar
não vás ao médico, não
depois
não te venhas queixar
Não te cures, não
vais ver onde vais parar
não vás ao médico, não
depois
não te venhas queixar
>>
Andas de café
em café na esperança
de encontrares
uma boa amiga
mas a idade já te mastiga
Tu tens ideias
como quase toda a gente
e tu sonhas
com a realidade
e é porreiro
esse teu ar
sempre de contente
>>>>
Não te cures, não
vais ver onde vais parar
não vás ao médico, não
depois
não te venhas queixar
Não te cures, não
vais ver onde vais parar
não vás ao médico, não
depois
não te venhas queixar
>>
Acabas num copo
na Trindade e não te topo
a pensar
no que já pensaste
nas escadinhas
do Duque
Às duas por três
apanhas o comboio
para o Cacém
ou então para Setúbal
e é quando não se fica
pelo Galo
com um ganda galo
a fumar um talo
até apanhar
o último estalo
Mas não te cures, não
vais ver onde vais parar
não vás ao médico, não
depois
não te venhas queixar
Não te cures, não
vais ver onde vais parar
não vás ao médico, não
depois…
não te venhas…
queixar!
Que talento poético, Amadeu!
Mestre Ortigão, grande manejador da língua portuguesa, lá onde está, deve estar roído de inveja.
🙂