Vais levar, Fabiana

Ainda há meia dúzia de esplanadas pobres, longe das ruas da moda, onde a dona serve às mesas e o marido carrega o vasilhame e faz contas à vida ao balcão. As cadeiras nunca são confortáveis, as mesas assentam sobre o empedrado irregular, a garrafa que nos trazem bem pode deslizar pelo tampo inclinado e rebolar pelo chão. Tudo é precário como se a qualquer altura os donos tivessem de levantar mesas e cadeiras e sair a correr com elas à cabeça, tal e qual como as vendedeiras de meias, que nos tiram os collants das mãos quando estamos a apreçá-los e largam a correr, rua abaixo, com a polícia caça-licenças no encalço. Mas havendo sol, e uma nesga de rio, é quanto nos basta para desfrutar do precário.

Numa das mesas, uma mulher escreve versos num caderno e esconde-os com a mão, risca a última linha, resgata da rasura uma palavra, afaga a nuca e vai-se encolhendo toda, como quem fecha a concha.

Ao meu lado, um segurança de discoteca fala ao telefone com um cliente, discute preços, horários, quer saber que tipo de festa é, quantos homens terá de levar com ele. Fico a saber que o melhor dos seus homens levou um tiro num braço mas vai ficar porreiro, como o aço.

A mulher do segurança esbofeteia as páginas de uma revista, fá-las passar a todo o gás, sem se deter em nenhuma, e quando chega ao fim regressa à capa. Nem ela nem ele reparam na filha, uma catraia de cinco ou seis anos, que leva tempo a tirar catotas do nariz e a colá-las no tampo da mesa, não por baixo, como é habitual, mas por cima, para ficar depois a olhar para elas, as suas bolinhas alinhadas com um sentido que nos escapa.

Um doente dos pulmões dá o seu passeio da tarde, tubos de plástico enfiados no nariz, garrafão do oxigénio no carrinho atrás, a rodar aos solavancos pela calçada, e o homem da mesa em frente, que até aí passara o tempo a jogar com o telemóvel, convida-o a sentar-se para tomar um pingo. Do discurso desdentado do doente não se percebe nada. O outro responde “Pois, pois”, e o doente entusiasma-se e quando dou por ela já está a cantar, com vozinha quebrada, quase sem fôlego, a «Maria Rita». A mulher dos versos levanta a cabeça e franze as sobrancelhas. Assim não há condições. Mas o homem está com os pés para a cova, que diabo, deixá-lo cantar.

– Eu pergunto à multidão mas ninguém a viu passar… dou uma vela a S. João se a voltar a encontrar…

Olha para nós como quem pede “Todos juntos!”, mas daqui não leva nada.

Da janela lá de cima (haveria vizinhos a espreitar-nos?) irrompe um grito: “Vais levar, Fabiana!” mas da Fabiana já só ouvimos um arrastar de chinelos em fuga. O grito aguenta-se no ar, fino e perfurante, não esmorece, como o aço. Corre, Fabiana, corre, e volta só para o jantar.

A mulher que escreve versos faz cara de dor, como se lhe tivessem metido para dentro, com um soco imprevisto, o verso prestes a irromper. Fecha o caderno e enfia-o na mala. Um dia destes vai passar-se, mas ainda não é hoje. Cuidadinho com a raiva dos que a contêm. O doente dos pulmões continua a lamentar a Maria Rita, tão triste, tão triste, que se ela soubesse. O mecenas do pingo aborrece-se e vai-se embora, não sem antes atirar a moeda para cima do tampo. Rodopia e cai, muito bruta, sobre o tampo, é uma esmola ou um insulto?

O porteiro termina a chamada e manda a mulher levantar-se com um gesto imperioso do queixo, ela repete o gesto à miúda, levantam-se os três, com o pai a abrir caminho, braços amplos, tanto músculo, mais parecem dois parênteses. Ficaram só para trás os pequeninos montes de catotas, precária instalação em honra do tédio.

Com a esplanada em sossego, pago o café e vou-me embora, que não foi para o sossego que eu cá vim.

Comments

  1. José almeida says:

    Esplendido. Belíssima crônica. Aguarelas sentidas da minha terra.

  2. José Peralta says:

    Uma maravilha…como sempre !

  3. antonio oliveira says:

    Catotas? Essa nunca tinha ouvido falar. É caso para dizer que estamos sempre a aprender. Já agora quantas vezes, no silêncio do meu quarto, dou comigo a escarafunchar o nariz enquanto, absorto, folheio um livro.

  4. sinaizdefumo says:

    Da Carla já nun spero outra coisa, de excelente pra riba, mas desta vez, bem, quer dzêr, uau, wow, uauuuuu!
    Voltei a fazer um search (sim qu’eu tamém sei ingrês) i livros de Carla Romualdo, nada, como é possible? Stá na forja, stá nun stá?


    • Pode ser que esteja no tear.

      • José almeida says:

        Da forma como escreve, no tear devem estar muitos…….
        …como dizia o Bocage… ‘à espera da ultima moda para fazer o fato’.

      • sinaizdefumo says:

        Que bruto eu, no tiar claro, qu’a menina nun é ferreira, é tecedeira, i cumo trabalha a sêda leva o seu tempo.

  5. Abel Barreto says:

    Mais uma excelente crónica vlnda do Porto, onde trabalho mas do qual pouco conheço.
    Não obstante, as histórias que conta são, sempre, familiares para mim.
    Obrigado por mais este belo momento.

  6. Adão Cruz says:

    A tal escrita nascida como melodia das cordas de um violino.

  7. Orvalho says:

    Será que depois de pagar o café, a Carla “voltou tão triste, tão triste …” ?
    Acho que foi dos seus textos que mais gostei. Talvez pelo movimento, talvez pelo Duo, talvez por me rever, talvez …
    Parabéns!

  8. jojoba says:

    Revejo-me imenso nas suas palavras. Obrigada por esta ode a um Portugal que desaparece, empurrado para fora do tempo em nome de uma turistificação impiedosa.

  9. Mjosé says:

    belo soletrar de um retrato, tornado mágico, cheio de flash e de swing! Muitos parabéns pelo texto, Carla R

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