Taberneiras

Sabemos que nos aceitaram quando as mulheres da casa nos tocam no ombro ou nos enlaçam pela cintura. São mulheres duras, calejadas, resmungonas, e nunca desbaratam os seus afagos por cálculo ou hipocrisia. Podem chamar-te “meu amor” quando te perguntam o que vais querer jantar, porque as palavras valem o que valem, mas só te tocam se tiveres vencido as barreiras que elas mesmas levantaram. A partir desse dia, és da casa.

E como és da casa, ouves catarses. Cenas de gajas, gritarias, uma garrafa de cerveja atirada ao chão, logo se disfarça dizendo que escorregou. Insultos trocados entre cozinha e balcão, mas também risadas insolentes e piadas à custa dos engatatões. Mulheres frustradas, que não estão a ir para novas, e que do amor só conheceram a traição e o bafo de vinho. Têm o coração amarrado, castigadinho com cordas para que não as meta em apuros, e gostam de comentar, com um sarcasmo que nunca chega a ser cruel, as paixões das novatas. Consolam a amiga que veio ver se o homem estava a emborcar ao balcão, e se ele vier, se ele aparecer, hão-de servir-lhe só um copo, mesmo perdendo de vender, e mandá-lo para casa com um empurrão porta fora.

São rijas e ásperas, têm língua afiada e sabem calar um homem com um berro, não precisam de ninguém que as defenda, não precisam de ninguém que as console, mas em certas noites de Janeiro, quando o vento empurra a porta que o último cliente deixou mal fechada e nos faz saltar a todos com o susto, no olhar que elas lançam a essa porta há uma sombra, há um fantasma, o de alguém que entrava assim e poderá ainda entrar, ou talvez já não. Há-de vir logo uma delas, a limpar as mãos ao avental para disfarçar o tremor dos dedos, e empurrar a porta com uma reprimenda para a sala, “Há aqui alguém que é de Braga, não sabe fechar a porta”, e assegurar-se de que ela fica bem fechada e encostar o rosto ao vidro embaciado para perscrutar a escuridão lá fora e ter a certeza de que não há sombras nem fantasmas, só noites de Janeiro, mas também elas hão-de passar.

Foto: Vicktor Dobai

Comments


  1. Pelo que escreve bem e pelo bem porque escreve (e não é de agora) você, cara Carla Romualdo, vale-nos mais que muita instituição representativa.

  2. José almeida says:

    Carla, permita que a trate assim, isto não é só ‘jeito’ e gostar de olhar para “pequenas coisas”, isto é talento. Gostei muito. Mais uma tela da minha terra. Sou português, do Porto. Parabéns.

  3. Rui Moringa says:

    Bonita “tela de escrita” sobre a vida, no feminino, da nossa terra-Porto.
    Muito agradecido.
    Lê-la, é entrar no céu, aquele céu criado pelos poetas e pelos “escrivas” tais como a Carla o é.


  4. Como amei ler isto. E emocionei-me! Conta muitas histórias ao mesmo tempo mas principalmente, retrata tão bem situações intemporais que são fáceis de perceber mas complicadas de contar.
    Adorei!