De como uma sátira política conduz à revisão do código penal por via de um contencioso diplomático

erdogan spiegelFoto: Capa “Der Spiegel”

Isto foi um verdadeiro policial e uma galhofa que entreteve o pessoal durante toda a semana. É que no meio de assuntos tão confrangedores como a questão dos refugiados, crises financeiras, paraísos fiscais e que tais, de repente temos um caso satírico no centro das atenções, um caso simplesmente ridículo elevado à categoria de caso diplomático, com potencial para

  1. provocar um agravamento da relação com a Turquia com a inerente problemática relativa aos refugiados
  2. provocar uma desavença entre os partidos da coligação no governo
  3. provocar uma actualização do código penal alemão.

Aqui vai a história completa: Primeiro foi uma música com letra dedicada às brutais tropelias de Erdogan, apresentada num programa de sátira política alemão, que motivou Erdogan a convocar o embaixador alemão em Ancara para exigir a extinção do vídeo. Uma semana mais tarde, o governo federal alemão rejeitou o protesto, declarando que a liberdade de imprensa e opinião “não é negociável”.  Parecia assim estar encerrada a contenda.

Uns dias mais tarde, outro programa alemão de sátira política do canal público ZDF retoma o assunto, apresentado uns versos – e não uma rábula sobre Erdogan na forma de canção, como afirma o jornal Público – dos quais consta que, quando um jornalista publica algo de que Erdogan não gosta, logo vai parar à cadeia, e ainda apelidando o presidente turco de tudo e mais alguma coisa, desde cobarde e mal cheiroso, até pedófilo e praticante de sodomia (escuso-me a espraiar os pormenores mas o vídeo está de novo disponível na net).

Vai daí, Erdogan apresenta um pedido formal ao governo alemão para que seja aberto um processo por ofensas a um chefe de Estado estrangeiro, ao abrigo do parágrafo 103 do Código Penal alemão, que criminaliza esse delito. Para que o processo possa ser iniciado, tem de existir não só uma queixa formal do país ofendido, como também o governo alemão tem que dar a sua autorização para a abertura do processo judicial. Para esse crime, a legislação alemã prevê pena de até três anos de prisão e multa.

A resposta de Berlim fez-se esperar e Erdogan, na sua impaciência, apresentou paralelamente queixa por crime contra a sua honra como cidadão comum, anunciando logo que a iria até ao tribunal supremo. Através desta via dupla, o caso teria que ser investigado pela procuradoria de Mainz, any way.

Há dois dias, Merkel anunciou que, com base na análise realizada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, Ministério da Justiça, Ministério do Interior e a Chancelaria Federal, o pedido de Erdogan recebeu despacho favorável do Governo, autorizando a investigação da queixa contra o humorista, por ofensas ao Presidente Recep Erdogan. Fica assim nas mãos da Justiça a decisão sobre se o caso deve avançar para um processo penal ou ser arquivado. Este resultado, embora acima de tudo simbólico, criou um forte mal estar entre os partidos da coligação, já que o SPD tomou uma posição clara e pública contra a autorização.

Na sua intervenção, Merkel justificou esta decisão, lembrando os laços que ligam a Alemanha à Turquia mas referindo, da forma mais explícita até hoje, a situação crítica dos direitos humanos na Turquia, citando em especial o caso dos jornalistas e as limitações no direito à manifestação e apelando à necessidade de melhorias a esse respeito. Declarou que o governo insta a Turquia a observar os direitos fundamentais, a liberdade de opinião, de imprensa e artística e sublinhou que num estado democrático de direito a Justiça é independente, não sendo tarefa do governo mas sim da Justiça analisar queixas apresentadas, pelo que a autorização atribuída se enquadra nesse espírito. Sublinhou ainda que a atribuição da autorização não significa de modo nenhum uma pré-condenação, mas sim que os tribunais irão examinar e decidir sobre o caso. Merkel acrescentou ainda que o parágrafo 103 relativo a ofensas à honra de chefes de estado estrangeiros é hoje dispensável e vai ser retirado do código penal, seguindo os tramites normais, até 2018.

A saga vai pois continuar, e entretanto o humorista, que a seu pedido já se encontra sob protecção policial, vai fazer uma pausa de 4 semanas. A ZDF, que inicialmente tinha retirado a sátira da sua medioteca por não corresponder “às exigências de qualidade que a ZDF exige de programas humorísticos“, voltou a disponibilizá-la – para evitar que toda a gente fale nela sem conhecer o seu conteúdo.

Dois terços da população alemã são contra a decisão de autorização e a popularidade de Merkel caiu para 45%. A procuradoria de Mainz tem agora a difícil tarefa de estabelecer a linha divisória entre onde acaba a sátira e começa o insulto, na perspectiva da liberdade.

Comments

  1. Nightwish says:

    A procuradora só tem que decidir se o estado alemão vai receber uma multa do tribunal europeu dos direitos do homem ou não, visto que este é muito claro.

  2. Já se percebeu que o Islão é resiliente perante a força militar (algo que faz desde que foi corrido da Europa), mas não se entende com humoristas. Foge deles como o Diabo da cruz… Talvez por isso faça sentido a sugestão de Bobo, de “atacar” os imperialistas islâmicos com bombardeamentos de humor, escárnio e mal dizer.

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