A tempestade arruaceira que os dirigentes do PSD e do CDS fizeram por causa das declarações de Mariana Mortágua no último congresso do PS, merecem ser analisadas.
Gritar histericamente que com essas declarações regressavam os tempos do estalinismo e o assalto à propriedade privada é, em 2016, mais do que despropositado: é estúpido. Mais estúpido ainda porque os autores da balela sabem muito bem que não é assim e estão a usar uma arma de arremesso salazarista que, como foi provado em 1974, não funciona. O comunismo, o fascismo, o nazismo, não se evitam com atoardas para amedrontar. Evitam-se com governação séria, competente e transparente que garanta aos cidadãos liberdade de expressão e reunião, igualdade perante a lei, direito a habitação, saúde, trabalho, ensino e apoio social em caso de fatalidade, assim como uma digna representação do país no mundo e respeito por todo e qualquer cidadão. Governações injustas é que dão origem a extremismos de má memória.
É verdade que, em 1975, houve em Portugal um forte movimento de resistência à implantação dum regime tutelado pelo PCP, porque se correu esse perigo. Nesse tempo a União Soviética imperava ainda e sustentava generosamente os partidos com essas aspirações. O PCP, que foi selvatica e estupidamente perseguido durante o salazarismo, não interpretou correctamente o golpe militar que derrubou a ditadura, mostrou ignorar a verdadeira natureza do povo, caíu na asneira do triunfalismo e da cobrança de facturas políticas ao sanear milhares de pessoas, a maior parte delas inocentes, ao saquear propriedades privadas na agricultura e na indústria, ao pôr os seus cabos de ordens na comunicação social e nas fábricas sem eles terem a menor ideia do estavam a fazer, a fazerem crer que a reforma agrária era por decreto e instantânea, a introduzirem a indisciplina nos quartéis e nas escolas com o objectivo, meio aboçalado, de lançarem o país na anarquia e dela sair vitorioso. O resultado foi: prisões cheias, uma multidão de desempregados rumando à emigração, empresas e serviços entregues as pessoas sem competência nem conhecimento, uma comunicação social (salvo raras excepções) a promover a alarvidade. E em cima disto tudo, uma descolonização feita em cima do joelho, à pressa, que trouxe para Portugal quase um milhão de refugiados, a maior parte desmunidos e despojados de tudo, que eleitoralmente falando, se ficaram pela indiferença e pelo PS e PSD, enquanto os que regressaram ricos assentavam arraiais no CDS. Um cocktail destes, tinha por força de ocasionar uma resistência nacional. Ninguém queria aquilo, mas também ninguém queria o regresso à ditadura e seus métodos. Ou por outra, só desejavam esse regresso aqueles que, passados a salto para Espanha e Brasil, trataram de passar à sucapa as pratas, as jóias, as obras de arte, o dinheiro. Essas pessoas tinham filhos e, naturalmente, educaram-nos nesta escala de valores, o que incluia um medo irracional e um ódio sem fim. Portanto, os que entram agora em cenas tristes de olhó lobo mau são os legítimos herdeiros daqueles que, em 1975, de rabo entre as pernas ou completamente borrados de medo, viraram as costas ao país e não levantaram um dedo. Receberam uma pesada herança e não conseguem cortar o cordão umbilical para poderem perceber que, caído o Muro de Berlim e em pleno século XXI, o leão estalinista está velho e sem dentes. É absolutamente ridículo mostrarem medo agora. Mas percebe-se que sejam ridículos para poderem regressar ao governo, ao poder, porque, segundo parece, vale a pena. Todos eles, no fundo, querem ter a oportunidade dum António Borges, dum Durão Barroso, dum José Luís Arnaut e companhia. Todos eles rezam baixinho a São Goldman Sachs.
Eu cheguei ao Canadá em 1983. Em pouco tempo notei uma coisa que me surpreendeu e agradou. Nas universidades, bibliotecas, museus e hospitais, há serviços inteiros e óptimos oferecidos por milionários – conforme atestam as placas nas paredes. Fiquei sabendo que várias empresas, incluindo as cervejeiras, subsidiavam largamente a ópera, as orquestras de grande porte e os teatros de alta qualidade, para que os bilhetes pudessem não ser tão caros. E que todos os anos distribuíam largas centenas de bolsas de estudo. Informaram-me que os milionários procediam assim para pagarem menos impostos. Não sei se isto é verdade, mas vamos admitir que sim. E daí? Melhoram os serviços, melhoram a vida das pessoas, e isso é o que importa. Porque partilham? Pessoalmente, penso que por serem gratos ao Canadá que os recebeu vindos de países onde reinava a ganância e a injustiça. Não querem ver repetidos no Canadá os disparates que destruíram os seus países de origem. O Canadá, por sua vez, sendo libérrimo, tem regras, tem leis, cobra impostos altos, aplicando severas sanções a quem não cumpra. Portanto, estes empresários mostram ser decentes e inteligentes, isto é, não passam as fortunas para as offshores.
Acham que valeu a pena tanta gritaria apalermada porque a Mariana preconizou impostos sobre os muito ricos, que são poucos? O drama de Portugal é os pobres serem muitos.
Do Canadá também chegam cartas de gente reaccionária a tresandar a bafio.
Comparar o comunismo ao fascismo só pode ser resultado de uma profunda ignorância ou de reaccionarismo mal disfarçado.
Para louvar a mortágua não precisava de chafurdar no anti-comunismo.
Donald Trump não diria melhor! Polvilhemos o planeta com uma mão cheia de milionários (“decentes e inteligentes”, como é hábito, capazes de uma “governação séria, competente e transparente que garanta aos cidadãos liberdade de expressão e reunião, igualdade perante a lei, direito a habitação, saúde, trabalho, ensino e apoio social”, o que até é redundante, pois de milionários só isso se pode esperar) e obteremos um planeta recheado de gente feliz e sem lágrimas. E ainda há quem se queixe de “tempestades arruaceiras”…
“Gritar histericamente que com essas declarações regressavam os tempos do estalinismo e o assalto à propriedade privada é, em 2016, mais do que despropositado: é estúpido.”
Não posso deixar de concordar consigo: considerada isoladamente a medida proposta não é um regresso ao Estalinismo nem um assalto à propriedade privada, concordo consigo. Mas … não pode descontextualizar a frase da Mariana Mortágua do que é a ideologia da BE: o BE é um partido anti-capitalista (http://www.bloco.org/media/mocaoA_Xconv_final.pdf). Sem vergonha e com toda a legitimidade democrática, naturalmente.
Mas é por isso que a exacta mesma medida defendida antes por Pedro Passos Coelho ganha um significado simbólico totalmente diferente quando é apresentada por um partido anti-capitalista num evento partidário de um dos dois partidos de poder em Portugal (e aplaudida), acompanhada das frases “a primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem está a acumular dinheiro” e “Cabe ao PS pensar sobre o que representa o capitalismo e até onde está disposto a ir para constituir uma alternativa global ao sistema capitalista”.
Dito isto, as “atoardas” como bem lhe chama não são no essencial dirigidas ao BE. São, antes de mais, um repto (mas agora de sentido contrário) ao PS: até onde está o PS disposto a ir para manter a coligação?!