À porta do restaurante, deparei-me com uma discussão entre um controlador de estacionamento e um arrumador, ambos muito solenes no exercício das suas funções, à volta de um carro com proprietário ausente. Desde que a Câmara do Porto concessionou o estacionamento a uma empresa privada, as ruas encheram-se de homens e mulheres apetrechados de coletes fluorescentes e com a identificação garrafal, nas costas: CONTROLADOR DE ESTACIONAMENTO. Os arrumadores não desapareceram, antes procuraram adaptar-se aos novos “partners”, como se diz em empreendedorês. Mas o arrumador, pelo menos este, o da discussão, possui por vezes um vínculo tácito com os seus clientes e rapidamente se solidariza com eles contra a figura do controlador. A discussão era toda cheia de salamaleques, porque o arrumador é um moço que está limpo há anos, e tem orgulho em trabalhar só com doutores e engenheiros. Era “o indivíduo” para cá, “a viatura” para lá, “o tiquê de estacionamento” para acolá, com o controlador muito imbuído do seu papel institucional e o arrumador inflado de uma dignidade que não dependia de coletes. Tive pena de não poder almoçar lá fora só para poder acompanhar a discussão. Mas não tinha tempo a perder e era dia de tripas. Já no restaurante, cruzei-me com um velhinho, de saída, mas que logo voltou atrás porque lhe faltava o chapéu.
O empregado, num equilíbrio delicado de travessas, pratos e copos, quis saber que se passava.
– Perdeu o chapéu? Mas era daqueles de enfiar todo na cabeça?
– Não, era um bonezinho.
Lá foi pousar a pratalhada para se pôr à procura. Na mesa ao lado daquela em que o velhinho tinha almoçado estava uma senhora, sozinha. O empregado aproximou-se da mesa, levantou a toalha para espreitar a ver se o boné estava caído, enquanto a avisava:
– Desculpe lá eu fazer isto, mas como não tem mini-saia….
Agachou-se aos pés dela. A senhora, imperturbável, mal levantou os olhos da sopa.
Noutra mesa, mais ao lado, já toda a gente procurava o boné que nem tinha passado por ali, mas nunca se sabe.
– De que cor é?
– É escurinho – respondeu o velhinho com decoro, como se dizer “preto” fosse demasiado brusco para aqueles senhores e senhoras tão solícitos.
E até eu, que tinha acabado de sentar-me, me juntei à busca. Levantaram-se as saias brancas às mesas e nada de boné.
Até que o velhinho se aproximou do empregado para poder dizer-lhe com voz envergonhada que se calhar tinha deixado o boné no móvel da entrada de casa, que a bem dizer não se lembrava de sair com ele para a rua, e que desculpássemos a trabalheira.
Foi em paz, abençoado por todos os comensais. Vieram as tripas e não se falou mais no assunto.
Já no café final dei por mim a pensar, e é um pensamento a que volto muitas vezes, que só espero que a modernidade (e venha ela!) nunca dê cabo disto.
Que ternura… Lindo…
Obrigada.
Que BOM ainda valer a pena presenciando esta , AINDA, maravilhosa realidade.
Precisamente.
Bonito texto, real e de excelente escrita.
Depois e sempre, há o “Homem que confundiu a Mulher com um chapéu” – Oliver Sacks.
Um mestre a fazer-nos rir com o pungente.
Os arrumadores vão ter de alcançar um superior grau de confiança dos clientes: os talões das máquinas colocados no exterior do automóvel não evitam a multa!
Confio bastante na capacidade de adaptação deles. Ainda sou do tempo em que o Rui Rio jurava acabar com todos.
Excelente texto, muito bem escrito e cheio de suspense.
Suspense é um grande elogio 🙂