De ano para ano, de mês para mês, de dia para dia, sinto-me a perder capacidade de compreensão do que me rodeia. De início pensava que era cansaço, depois que talvez fosse de dedicar poucas horas ao sono, até que sim, um gajo assume a consciência de que envelhece, o raciocínio vai deixando de fluir da mesma forma e a incompreensão tolhendo-nos. Envelhecer mentalmente é, afinal, ir perdendo lentamente a faculdade de adaptação ao meio. Daí o progressivo isolamento…
Escrevi lentamente, porque assim é, mas creiam que agora tudo parece ter sido num ápice, num instante, como se diz, de um momento para o outro.
Mas vem esta confissão a propósito de quê?
Da solidão que sinto apoderar-se de mim, sem estar só, entenda-se.
Consigo compreender profundas indignações com as injustiças, mas esta em particular, a que visa apenas Sócrates e Ivo Rosa, com sensibilidades assomadas de aleivosia contra duas pessoas, quando vivemos a corrupção em Democracia há quase meio século, com casos atrás de casos, com compadrios à vista de todos, com uma indecente promiscuidade entre negócios e política com a alta-finança a corromper a eito, não me consigo enquadrar nem entre os corruptos nem entre trauliteiros que descrêem na Democracia buscando Justiça fora do Estado de Direito.
Antes de chegar a este estado, como vivi por dentro a OPA da SONAE à PT, não tenho a menor dúvida sobre o que andaram a fazer Salgado, Sócrates, Zeinal e Granadeiro, a administração da CGD e a do BCP, bem como o inenarrável Comendador Berardo. Não preciso que nenhum tribunal me esclareça, mas também não compreendo, com o que chegou ao conhecimento geral, como é que foi possível a comunicação social e os cidadãos não erguerem na altura a sua voz!
Mas também sei de muitos outros, desde o Presidente que aconselhou o BES a todos os portugueses quando tudo estava à vista, o Dias Loureiro, o Oliveira e Costa, o Duarte Lima e todos os que se montaram em PPP’s com o Estado, entre muitos outros.
Tudo começa no compadrio partidário, na de seita ou organização secreta, nos negócios privados e particulares que querem ser sustentados pelo Estado!
Espero morrer democrata, espero morrer num Estado de Direito, espero morrer a lutar pela Justiça económica e social dos mais desprotegidos, espero morrer a lutar para que a Justiça esteja presente em todos os actos do Homem, espero morrer limpo.
É a idade que não me perdoa, tolda a análise propiciadora da compreensão, mas não me afasta, espero que até ao fim, das raízes da Democracia.
Como viveu por dentro a OPA da SONAE à PT, diga-nos lá em que consistiu, em concreto, a “intervenção” de José Sócrates.
CARLOS MATOS GOMES
A justiça das multidões.
Baudelaire está a ser celebrado a propósito dos 200 anos do seu nascimento e como o poeta maldito que modernizou a poesia, com o célebre “As Flores do Mal”. É apresentado como um exemplo do conflito entre o comportamento do individuo, mesmo que marginal (como era o seu caso) e a multidão, que teve lugar no período revolucionário em França e de que vivemos hoje aqui em Portugal uma réplica à nossa escala. Baudelaire utilizou extressões goût de la vengeance” (gosto da vingança) e do “plaisir naturel de la demolition” (prazer natural da destruição), para classificar as atitudes das multidões. Podemos utilizá-las hoje a propósito da multidão mediática. Há, segundo as notícias, mais de 150 mil peticionários disponíveis para um lugar de participantes num auto de fé, ou a uma execução com a guilhotina numa praça pública.
O historiador inglês Georges Rudé, em A multidão na história, cita as formas de tratamento da multidão de Gustave Le Bon, o criador da moderna psicologia de massas, como: “irracional, instável e destrutiva, intelectualmente inferior aos seus componentes, primitiva, ou com tendência a reverter a uma condição animal”. Le Bon admite também que as pessoas de instintos destrutivos tendem a sentir-se atraídos pela multidão.
Esta antiga qualificação das multidões pode aplicar-se aos movimentos populistas, justicialistas, que medram hoje em oposição a comportamentos geralmente classificados pela trilogia: humano/normal/racional. Já recebi propostas para integrar esta nova multidão vindas pessoas que julgava normais!
Voltando a Baudelaire, em Les Veuves, o poeta que foi acusado de ausência de mens sana, de loucura, descreveu o que hoje vivemos, afirmando que multidões refletem “a alegria do rico no fundo dos olhos do pobre”. Isto é, há sempre um rico, um pastor, a promover a irracionalidade das multidões e estas não partem à desfilada espontaneamente. As flores do mal crescem e confundem-se com as de um jardim.
Pois, o problema…
É que na OPA da PT a SONAE também não gozava de grande imagem. Também havia algumas pertinentes interrogações sobre os contornos do negócio.
E, segundo penso, a generalidade da população era sensível à manutenção da PT sob controle público, os trabalhadores estavam receosos do que pudesse acontecer a seguir (parece que nunca há OPA sem despedimentos…) e ninguém conhecia os pormenores da relação dos Bavagranadeiros com o Salgado.
Talvez tudo isso justifique alguma coisa. Por exemplo, o aparente silêncio da comunicação social.
POIS!
A OPA era da SONAE à PT, e não o contrário.
Pois era! O texto ficou confuso. “Na OPA da PT”, refere-se ao acontecimento OPA. Tudo o resto se mantém.
Oh pá, já lá dizia o outro: Não há nada que não se faça. E o que é preciso é fazê-lo bem. A camarilha tem a escola toda e até passa diplomas. O Ivo apenas constatou a ausência de provas, o que não significa a ausência de cambalachos. Apenas se provou que foram feitos na perfeição ou quase.