O adultério revisitado

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o arrependimento que nada cura

Ontem, referi o pior dos pcados, sendo pecado uma relação que um ser humano pode cometer ao permitir-se amar a outra pessoa à qual não está unida por nenhuma outra relação que a da libido. Referia que era a violação de fidelidade conjugal, de diferentes maneiras em diversos sítios do mundo. Se falo dos Massim da Oceânia, analisados por Malinowski entre 1914 e 1924, com estadias permanentes ou visitas esporádicas, podemos reparar que no adultério existe na união carnal, amorosa ou não, entre pessoas de um mesmo clã, sendo clã uma família unida por laços consanguíneos. Laços consanguíneos, conforme for o sexo da pessoa. Apesar de uma família estar composta por homens e mulheres que se reproduzem entre eles, nem toda relação é adúltera. Os filhos do casal acabam por ser de outro grupo doméstico, se os descendentes forem varões: a idade da puberdade, esses filhos deve circular à casa do irmão da mãe, que é, conforme os costumes, o pai dessas crianças. O homem da mulher

A Morte e a Donzela, D. 810, 3º mov., F. Schubert,
executada pelo Quarteto Caramuru

é contratado de outro clã da mesma etnia, para a sua reprodução familiar. As filhas desse tratado casal, são de um clã diferente ao do homem de mãe, pelo que podem ter relações sexuais e ter filhos. Não há relação carnal entre o homem da mãe e os seus filhos varões, por não ser essa a sua orientação libidinal. Aliás, esses filhos já estão comprometidos para viver com mulheres de outro clã, e assim vão circulando de um a outro grupo social, multiplicando as relações clánicas para criar novos seres humanos, semear, pescar, fabricar roupas de ornamentos, caçar e se defenderem em caso de guerra. O adultério parece quase impossível, apesar de libido poder orientar ao filho da irmã que circula à casa do irmão e pode acontecer um namoro entre uma das mulheres mais novas do irmão da mãe e o púbere que ai aparece. Como acontecera na primeira visita de Malinowski ao arquipélago da Kiriwina, sítio escolhido por ele por ser acolhedor, amável e hospitaleiro. Foi assim que presenciou como o filho mãos novo da família do chefe Oramakana, tinha relações íntimas com a sua mulher mais nova, uma rapariga bem mais nove que todas as outras mulheres que um Chefe pode ter, tantas como necessárias para distribuir os bens oferecidos a ele pelo grupo doméstico da irmã, para depois repartir e distribuir entre os parentes dos irmãos das mulheres que tinha. Não havia lei para este tipo de problemáticas e o Chefe tribal não podia despedir ao filho da irmã, por ser o seu herdeiro nos bens e no cargo. Uma separação de este tipo, travava a circulação de bens e de pessoas. O Omarakana calou, não faliu com o filho da irmã nunca mais nem teve relações com a nova mulher. Ao falecer, o filho da irmã passou a ser chefe Omarakana e herdou não apenas as obrigações, bem como as mulheres, os filhos todos e os deveres de redistribuição de bens que o Omarakana tinha como dever. Eis porque havia tantas mulheres para só um homem nesse tabanka: rodos os homens das suas irmãs, tinham como dever entregar mais da metade da produção, que, pela sua vez, era redistribuído às casa das irmãs. Não havia adultério, que se soubesse, nem descendentes do mesmo sangue. Havia, sim, reciprocidade ou colaboração igual entre parentes e redistribuição dos bens recebido.

A noção de adultério nasceu no Oriente Médio. a prática já existia há milhares de anos, em muitos lugares, mas especialmente no Oriente Médio. Com a sua origem exacta desconhecida, a condenação de adúlteros (homens e mulheres) à morte por apedrejamento, está, por exemplo, na Torá, livro sagrado dos judeus.

Quando for encontrado um homem deitado com uma mulher que tenha marido, morrerão ambos, e eliminarás o mal de Israel. Quando houver uma moça virgem desposada com algum homem, e um outro homem a achar na cidade, e se deitar com ela, tirareis a ambos à porta da cidade, e os apedrejareis, e morrerão; e eliminarás o mal do meio de ti. (Deuteronômio, 22, 22).

Este tipo de noção não existia entre os Massim e era o debate entre, como referi no ensaio prévio a este, entre um discípulo de Freud, Charles Jones e o próprio Malinoski.

Se entre os Massim não havia problemas, entre hebreus, israelitas, palestinianos, tinham todo este tipo de problemas, punido com o apedrejar aos adúlteros.. Evidentemente, a prática não era frequente entre os judeus da Antiguidade. Um Sinédrio (tribunal composto por sacerdotes, anciãos e escribas) que, em setenta anos, condenasse mais de duas pessoas à morte, por qualquer motivo, era considerado sanguinário e visto com reprovação (porque da mesma forma que as leis eram severas, aplicá-las com moderação era um imperativo). Com a diáspora, e o contacto com outras culturas, a prática, abandonada, passou a ser apenas uma referência histórica.

Muitos vêem no cristianismo uma “evolução” do judaísmo, mas ele não é: são realidades distintas, paralelas e, há dois mil anos, simultâneas. Dito isto, há também nos Evangelhos uma referência ao apedrejamento de adúlteros, mas para condená-lo. Está em João, 8, 3. Como que para testar Jesus, um grupo de escribas e fariseus o interroga: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante delito de adultério. Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. Tu, pois, que dizes?” Jesus demora a responder, mas dá o veredicto: “Quem dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra!”. Como todos se afastaram, Jesus conclui: “Nem eu te condeno. Vai, e, de agora em diante, não peques mais.” Mas por que tais fatos só têm acontecido em países islâmicos, se há fundamentalistas em todas as religiões? Certamente há a miséria e a ignorância. Mas me parece que o principal motivo é outro: é nos países muçulmanos que a fé tem sido usada com mais frequência como motor para se chegar ao poder. E, uma vez no poder, é através da religião, deturpada por toda sorte de radicalismos, que se procura manter o controlo sobre o povo. Fundamentalista sem poder político é um leão sem dentes: não apedreja, não fere, não mata; apenas prega a sua visão estreita do mundo.

Esses fanáticos dizem querer defender a pureza da religião. Eles parecem não perceber, no entanto, que em cada homem-bomba, em cada ato de terror, em cada  mulher condenada a morrer apedrejada, a verdadeira vítima é o próprio Islão, uma palavra árabe que tem a mesma raiz da palavra paz, mas que, por obra desses fanáticos, tem sido vista como o oposto do que é: uma religião bárbara e violenta. A pedra não atingiria apenas Amina, mulher acusada de adultério como metáfora para o impedir, mas, mas, principalmente, o islamismo cuja pureza dizem defender.

O adultério existe e faz parte da vida quotidiana, mas, hoje em dia, sem o rigor do começo da raça humana. O problema é que nos povos onde o adultério acontece, são povos que moram colados ao rigor da lei dos textos, para serem servos da divindade.

O resto do assunto, está especificado no tecto anterior a este, com detalhe. A ele me remeto para acabar com esta situação que me persegue em pensamento.

O adultério, é, como referi no outro texto, um desapreço da pessoa enganada. É esse engano o que é punido pela lei, apesar de que, hoje em dia, ninguém confessaria a sua traição, punida pela lei, por faltar a palavra dada de amar, cuidar, tomar conta de uma pessoa. Com as emotividades da pessoa enganada, desfeitas. Um divórcio não cura os sentimentos e emotividades de um adultério. Pode ser um paliativo para o engano, mas não melhora os sentimentos de amor que se tem pela pessoa que se ama. O sofrimento pode levar a agonia do ser, de se sentir uma pessoa a menos, de desenvolver raiva não apenas com que atraiçoa, mas contra si próprio ao se sentir um ser a menos.

O adultério é o prazer, mas a tristeza posterior, da traição cometida, e é capaz de levar a pessoa traída, a uma psicopatia que apenas pode ser curada no divã de Freud…

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