Acordo Ortográfico: e se José Saramago fosse brasileiro?

Antes de ter alcançado o Olimpo da literatura mundial, Saramago dedicou-se a várias actividades, entre as quais, a de tradutor. Descobri, cá por casa, uma dessas traduções, a Arte do Ocidente. A Idade Média românica e gótica (a primeira edição é de 1978), e resolvi fazer uma experiência: como poderia ser esta mesma tradução, em Portugal e no Brasil, com base no próximo Acordo Ortográfico? Já se sabe que estamos no campo das suposições e que podemos sempre argumentar que Saramago poderia, hoje, ter traduzido de maneira diferente, mas não deixa de ser curioso ver se a desejável uniformização poderia ser alcançada através de uma suposta unificação ortográfica.

Leia-se, então, em primeiro lugar, uma parte do primeiro parágrafo da Introdução do livro acima referido, de acordo com a tradução de Saramago:

“Cada um dos capítulos da nossa civilização tem o seu suporte geográfico e a sua paisagem. Acordam-se e iluminam-se sucessivamente, como os diversos aspectos dum grande sítio percorrido pela luz. A Antiguidade Clássica deu ao Sul da Europa a substância e o contorno da sua humanidade. Foi em redor do Mediterrâneo que a Grécia e Roma conceberam e fizeram prevalecer princípios políticos, uma perspectiva do pensamento e uma imagem do homem que adquiriram um valor universal. As origens do cristianismo são orientais e mediterrânicas: teve primeiro o tom da cultura helenística, depois o das comunidades da Ásia.”

Vejamos, agora, que modificações seriam introduzidas pelo Acordo Ortográfico, numa edição portuguesa:

“Cada um dos capítulos da nossa civilização tem o seu suporte geográfico e a sua paisagem. Acordam-se e iluminam-se sucessivamente, como os diversos aspetos dum grande sítio percorrido pela luz. A Antiguidade Clássica deu ao Sul da Europa a substância e o contorno da sua humanidade. Foi em redor do Mediterrâneo que a Grécia e Roma conceberam e fizeram prevalecer princípios políticos, uma perspetiva do pensamento e uma imagem do homem que adquiriram um valor universal. As origens do cristianismo são orientais e mediterrânicas: teve primeiro o tom da cultura helenística, depois o das comunidades da Ásia.”

A mesma tradução, com o mesmo Acordo, numa edição brasileira, ficaria, salvo erro, assim:

Cada um dos capítulos de nossa civilização tem seu suporte geográfico e sua paisagem. Se acordam e se iluminam sucessivamente, como os diversos aspectos duma grande região percorrida pela luz. A Antiguidade Clássica deu ao Sul da Europa a substância e o contorno de sua humanidade. Foi ao redor do Mediterrâneo que Grécia e Roma conceberam e fizeram prevalecer princípios políticos, uma perspectiva do pensamento e uma imagem do homem que adquiriram um valor universal. As origens do cristianismo são orientais e mediterrânicas: teve primeiro o tom da cultura helenística, depois o das comunidades da Ásia.

Como é possível verificar, o Acordo Ortográfico não impedirá diferenças sintácticas (como a anteposição dos pronomes ou a supressão de alguns artigos definidos, contraídos ou não), não impedirá diferenças semânticas (para um brasileiro, “sítio” é uma propriedade rural, o que explica o uso de “região”) e, curiosamente, poderá dar origem a diferenças ortográficas (aspeto/aspectos e perspetiva/perspectiva).

Por estas e por outras, continuo sem perceber o entusiasmo revelado pelas editoras com o Acordo e ainda percebo menos este excerto da resolução 8-2011: “Ao Governo compete criar instrumentos e adoptar medidas que assegurem a unidade da língua portuguesa e a sua universalização, nomeadamente através do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e da promoção da sua aplicação.” Sei que não sou o primeiro a fazer esta pergunta: o que tem o Acordo Ortográfico a ver com unidade da língua portuguesa? Mais: alguma vez será possível a existência de uma unidade da língua portuguesa? Finalmente: será sequer desejável que essa unidade venha a existir?

Comments

  1. Anti-Acordo says:

    Das várias mentes brilhantes que se têm manifestado contra este Acordo, o ideólogo que, a meu ver, apresenta os melhores argumentos chama-se Luiz Felipe Scolari – Felipão, para os amigos. Os seus argumentos são apenas dois: ” pimbolim” é ” matraquilhos” e “aero-moça” é hospedeira. Como vêem, é fácil demonstrar que, por mais uniformizações que se tentem fazer, o português será sempre falado de maneira diferente conforme a cultura de cada povo. Posto isto, pergunto eu: fará sentido insistir numa uniformização quando nunca se conseguirá atingir uma uniformização a 100%?

  2. António Fernando Nabais says:

    Concordo tanto, que até já escrevi algo muito parecido:

    http://www.aventar.eu/2011/01/27/acordo-ortografico-a-opiniao-de-scolari/

  3. Rodrigo Costa says:

    … Para ser franco, já disse, em espaços públicos, que o “acordo ortográfico” —este acordo ortográfico— nasceu de um concílio de “putas”. Quer dizer: não foi ideia de pessoas que se reuniram para, analisando as vantagens e as desvantagens do desenvolvimento linguístico, tenham intruduzido alterações. Por razões de comércio, a luz, digamos assim, abdicaria da sua identidade —muito ou pouca—, para ir ao encontro dos seus reflexos. Não me parece que faça sentido.

    Há inclusive, o inglês multifacetado —as tais variações diatópicas—, que nunca sofreu alterações na origem, para além das que a origem, estruturadamente, tenha entendido fazer, tendo em vista o “consumo da casa”. De resto, Ingleses, Americanos, Escoceses, Australianos, e por aí fora, nunca levantaram quaisquer problemas. Todos se lêem uns aos outros, sem dificuldades de descodificação.

    Por coerência, passaria, também, a fazer sentido que se uniformizasse o Português, cá dentro; porque, como se sabe, há regiões que têm, digamos assim, os seus próprios “trejeitos”, algumas especificidades na escrita e na oralidade.

    Embora as variações diatópicas tratem das diferenças linguísticas em termos refgionais —penso—, não vejo problema em incluir este caso neste capítulo, uma vez que, com mais ou menos propriedade, falamos de regiões —nações— que, sendo autónomas —a independência é uma força de expressão, de facto—, pertencem, linguisticamente, a uma nação —Língua— comum.

  4. São entre 45000 e 90000 as grafias duplas na maravilhosa “língua unificada”: http://bit.ly/eszYhZ

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  1. […] nunca tive dificuldade em ler livros porque a ortografia era diferente, como, na realidade, continuará a ser, tal como a semântica e a sintaxe.  Registo, ainda, a opinião de que a diversidade será sempre fonte de riqueza e não de […]

  2. […] ilustrar esse facto, já publiquei este vídeo e este texto. A consulta desta pequena lista serve como confirmação das muitas diferenças lexicais que se […]

  3. […] Nabais: Pois, a minha juventude e a minha extraordinária beleza física impedem-me de perceber. Antes de se ir embora, gostaria, ainda, que me demonstrasse que é verdade aquele anúncio de que agora se passa a escrever exactamente da mesma maneira em Portugal e no Brasil. […]

  4. […] desmente: não há edições únicas, não há edições únicas, não há edições únicas e não haveria edições únicas. Nada disso impede os acordistas de afirmar que há uma ortografia […]

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