uma ânfora, o túmulo do amigo

Mozart te deum

Homenagem ao meu amigo Francisco Santos

O descanso do trabalhador

Fiquei sem fala. Era esperado, mas estávamos habituados a ver a Francisco Santos sentado no seu cadeirão, baixo o seu imenso, grande e elegante chapéu-de-sol, todo colorido para alegrar a sua vida, comprado especialmente para ele, a falar ou tentar falar com todas as pessoas que passavam pela rua, quando o tempo era bom. O que dizia, apenas a sua mulher, a quem denomino Mãma Guilhermina, traduzia. As vezes, nem ela entendia.

Desde os seus 20 anos, tinha começado a trabalhar como pintor nos barcos fabricados na Lisnave. Eram os tempos da ditadura no nosso país. Ele, nada comentava, a sua boca estava selada no aspecto político. Excepto quando foi condecorado pelo Presidente da República, duas vezes na sua comprida vida, como o melhor trabalhador. Sabia das minhas histórias, mas nada acrescentava: ouvia em silêncio. Trabalhou como poucos. Começou antes de cumprir os seus 20, idade que tinha quando conheceu uma rapariga linda de Tomar, de quem namorou-se perdidamente. Ela tinha 18 anos e a sua beleza dava nas vistas, todos olhavam para ela. Guilhermina Rosa Pereira trabalhava como doméstica, até casar aos seus 18 com Francisco, um moço de 20, que a seduziu, estiveram juntos, após rituais e registo, 65 anos. As sete da manhã estavam ele e o seu grupo, no seu sítio de trabalho. Até as 6 da tarde. Entregou a sua vida a fabricar barcos durante sessenta anos, desde os quinze . O seu tempo de vida foi para a mesma empresa, quando em Portugal tínhamos excelentes estaleiros. A minha Mãma Guilhermina, como eu a chamo, teve duas filhas, Luísa e Judite. A sua vida estava dedicada a elas. O seu trabalho fora de casa diminuiu: tinha que amamentar, mudar fraldas, lavar a roupa de casa e das pessoas do lar, na Quinta do Azevedo, na Parede. Parece que estou a inventar, mas Francisco, O Chico como era denominado pela família, ajudava nos afazeres de casa, a limpar mas não a cozinhar. O seu saber era a pintura. A Mãma Guilhermina, de Tomar, transferiu-se à Parede por causa do marido que era desta vila, aldeia nesses tempos. Tomava conta de um casal idoso e sem filhos, trabalho que incrementava o salário do marido. Era a época da pobreza de Portugal: quem nada tinha, estava obrigado a colaborar nas entradas de bens e dinheiro em casa, bem como saber poupar. Até o dia de hoje, a Mãma Guilhermina ia usando sempre a mesma roupa, de trabalho, com um avental o bibe azul e branco, com desenhos  quadrados que defendia a roupa desde o pescoço até os joelhos.

Francisco Santos, este moço da Parede, contara-me um dia que nunca tinha faltado ao trabalho, entrando a hora devida e a sair quando o trabalho acabava, nem que fosse com mais horas de labor, que não eram pagas. Passados poucos anos, este trabalhador amador passou ao quadro da Lisnave, até o dia da sua jubilação. Bem sabemos que o ordenado de jubilado é menos que um salário. Infelizmente, vivemos dentro de uma sociedade em que o ser humano é útil, enquanto produz, excepto se procura alternativas. As alternativas são muitas: a primeira, a poupança com investimento. Francisco entregava o envelope fechado a sua mulher, quem sabia distribuir o dinheiro entre a educação das filhas, as compras para a casa, preparar a comida que o marido levava para não gastar em restaurantes, como todos faziam nos tempos pobres. A casa era deles, doada pelo casal sem filhos que a Mãma cuidava, e, enquanto a família ia crescendo, a casa também. A profissão de Luísa a levou a Lisboa, longe da Parede, casou e deu uma neta aos seus pais, a Rita. Judite ficou em casa, no andar de baixo, para tomar conta dos pais, marido e vários filhos, crescidos já, até o ponto de Judite ser avó e os pais bisavós de quatro, se me lembrar bem.

Acabado o trabalho fora de casa, abriram no quintal, um posto para vender vegetais, que Francisco ia comprar a feira, todas as Segundas férias as cinco da manhã. Eu era o cliente fixo, comprava, pagava ao fim de mês e eles traziam-me as compras a casa. A Mãma Guilhermina tinha uma força….e o marido ainda mais….

Sem saber como nem porque, a 13 de Janeiro de 2002, Francisco teve um edema vascular cerebral, caiu, perdeu o conhecimento, ia morrendo. De imediato ao hospital, vários meses, onde a Mãma Guilhermina e as filhas iam tomar conta dele. Era mais difícil para Luísa, por morar longe e por causa do trabalho como: funcionária da Segurança Social, tinha que estar sempre no seu sítio. Os meses corriam e Francisco voltou a casa com massagistas, médicos que o tratavam sem cobrar. Os anos começaram a entrar pelo corpo dentro e a única pessoa que ele queria era a mãe, como denominava a sua mulher. Nem dormia, a Mãma Guilhermina. Francisco praticamente tornou à infância. De dia e de noite. Sempre ao pé dele; aliás, não sabia quem era quem, excepto a garota da sua vida.

Seria uma premonição ou não sei, mas ao Domingo telefonei a Mãma e perguntei. Sem um soluço, mas a sofrer intensamente, a voz tremia ao falar: “ Sr. Doutor, penso que ele já vá embora”. E foi. À terça-feira 26, Luísa teve a gentileza de aparecer na minha casa, a 30 metros da deles, e sem palavras, eu adivinhei: Já não está. Foi-se embora de madrugada….ontem a tarde…

Francisco, lá fui eu da calçaas curtas, estava a escrever e queria, com todo, prestar homenagem a um Senhor… Sessenta e cinco anos de vida juntos, desfeitos num segundo, a seguir uma prolongada agonia… que a Mãma Guilhermina, filhas, netas, bisnetas, souberam cuidar.

Com quem falo eu agora? Apenas com a Mãma… que, nos seus 83 anos vai descansar de ser enfermeira do marido, como Francisco descansou do tormento do acidente vascular cerebral, que aumentava cada dia ao longo de nove anos.

Será descanso. Mas o luto cobra e na passagem dos dias, os anos passados juntos serão lembrados com a ausência do pai…

Não sou homem de fé, mas se houver uma divindade, o pai está, de certeza ao pé do pai divino…no qual eles acreditam.

Descansem todos. É merecido….enquanto Francisco navega pelo mar, onde, a seguir a incineração, queria descansar….

Raúl Iturra

28 de de Julho de 2011

Comments

  1. Prof.Doutor Raúl Iturra says:

    Escrevi este texto em honra do amigo que jã não está. Repousa na nossa memória e navega numa ânfora pelo mar. nove anos de doença que não perdoa a vida

  2. Carlos Sousa Ramos says:

    De certeza que, do lugar onde se encontra o seu amigo “Francisco” estará a sorrir e a dizer: “..este senhor doutro sempre a considerar-me…”.
    Um bem haja a si por tão intenso elogio ao seu amigo.
    fiquei sentido….Obrigado.
    Carlos Sousa Ramos

  3. Nuno Álvaro Coelho Fernandds says:

    AMIGO FRANCISCO SANTOS NUNCA ESQUECEREI O TEMPO PASSAVA NAQUELA RUA . O SENHOR MUITO DOENTE MAS SEMPRE COM SORISO SIMPATICO COM SUA MULHERE AMIGA E TAMBEM ERA SUA EMFERMEIRA . AGORA ESTA LA SEU DESCANCO. NOS FICAMOS COM MUITAS SAUDADES ADEUS AMIGO FRACISCO SANTOS

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