Um dos tiques habituais do político que está no poder ou de quem o defende reside em criticar os críticos, afirmando que só criticam por criticar, que não fazem “críticas construtivas” ou que não têm “propostas concretas”. A cor do partido que esteja, circunstancialmente, no governo é irrelevante: a crítica só serve para ser desvalorizada.
Sobre a manifestação de ontem já ouvi e li opiniões deste género, mesmo quando, a contragosto, reconhecem que algo está mal.
É importante, antes de mais, não desvalorizar a crítica destrutiva, porque há sempre a hipótese de que a maledicência pura e simples contenha verdades insuspeitadas. Por outro lado, uma manifestação de gente desesperada que se junta para gritar contra quem a pisa, rouba, explora, desrespeita, não serve para fazer críticas construtivas ou propostas concretas.
Fazia todo o sentido, aliás, aproveitar a ocasião para que os milhares de indignados se pusessem na rua a discutir ideias construtivas e propostas concretas. No Porto, por exemplo, teria sido extremamente fácil que os manifestantes que estavam na Batalha procurassem fazer ouvir as suas ideias aos que estavam nos Aliados e que cada um fosse dando a sua opinião até se chegar a uma proposta concreta.
Por outro lado, esta manifestação não nasce apenas do desespero irracional de quem vê rendimentos cortados ou impostos aumentados ou carreiras congeladas ou promessas quebradas. Esta manifestação e outras formas de protesto surgem porque há críticas e propostas ignoradas por um governo que, por exemplo, insiste numa austeridade que destrói a economia e, portanto, a sociedade. Na verdade, este governo é mais destrutivo do que qualquer crítica disparatada.
Concordo, em grande parte, com o Fernando Moreira de Sá e felicito-o pela frontalidade que põe em tudo o que escreve, o que o torna capaz de criticar construtivamente aqueles com quem partilha a barricada política e de valorizar as críticas arremessadas de trincheiras adversárias. Discordo, contudo, do meu companheiro aventador quando cria a figura do gaspar expiatório, porque não é possível esquecer de que modo Passos Coelho conseguiu chegar a um poder que já não merece, num país que já merece muito melhor, sobretudo se tivermos em conta que parecia difícil ser pior do que Sócrates.
Ao contrário do que se pensa, ninguém põe em causa o direito à manifestação e indignação por si só e como exercício de cidadania. Mas é pena que a cidadania só acorde quando um governo (no sentido lato da palavra) nos vai ao bolso. Onde estava a indignação e a cidadania quando o governo se pôs a construir auto-estradas a torto e a direito (auto-estradas que, não surpreendentemente, estão hoje às moscas: http://aventar.eu/2012/11/30/autoestradas-portuguesas-e-trafego-medio-diario)? Onde estava a indignação e o activismo quando o governo em ano de eleições aumenta os salários dos funcionários públicos acima da taxa de crescimento do PIB ou concede a aberração da “progressão automática nas carreiras”? Onde estavam elas quando o ministério resolveu fazer obras de luxo nas escolinhas? Ou quando se lembrou de distribuir computadores entre as criancinhas quando a maior parte dos professores não estão preparados para leccionar com eles e as próprias criancinhas, ao contrário da crença popular, não nascem ensinadas? Ou quando o presidente da junta de Vila Velha da Rabona de Baixo resolve construir um centro cultural para servir os seus 2500 habitantes? Por que razão o activismo não perguntou nestas alturas: “Então, mas quem vai pagar isto? Há dinheiro?”; “Vamos estourar milhões e milhões numa auto-estrada só para demorar menos meia hora a chegar a Lisboa?”; “Vamos construir um centro cultural quando na cabeça de concelho a 20 km daqui temos um igual?”; “Vamos pôr as escolas com candeeiros Siza e computadores Magalhães, mas deixamos as bibliotecas com livros de 1960 e as criancinhas a comportar-se da maneira que querem?”. Ninguém perguntou e a dívida foi-se acumulando até níveis tão incomportáveis que foi necessário pedir uma intervenção externa. E agora queixamo-nos de que a culpa é da troika, que nos emprestou dinheiro… É certo que águas passadas não movem moinhos e não é a lamentar os erros do passado que a austeridade vai embora. Que sirva pelo menos para memória futura (e aqui está a mais-valia da História) e que os portugueses aprendam que não há obras públicas nem benfeitorias gratuitas e que tudo tem um custo. E já agora que dêem uma valente castanhada em PS, PSD e CDS nas próximas eleições.
Concordo com quase tudo. Algumas ressalvas: o aumento dos funcionários públicos (classe a que pertenço) é um clássico em anos de eleições, mas a verdade é que todos esses aumentos são absorvidos pelos aumentos abaixo do valor da inflação nos outros anos ou pelos cortes salariais que tiveram início em Janeiro de 2011. A “progressão automática das carreiras” não chega a ser um mito, mas anda lá perto e também se relaciona com os falsos aumentos salariais. Conclusão: o dinheiro gasto para comprar votos aos funcionários públicos foi sempre recuperado. Já o das auto-estradas inúteis ou o das obras da Parque Escolar, por exemplo, faz parte do enorme buraco criado por governantes e autarcas. A “troika”, por outro lado, não se limita a agir como um banco que empresta dinheiro: é um instrumento ao serviço da banca e do patronato, sem qualquer resquício de sensibilidade social. Também desejo uma valente castanhada aos três partidos que andam a prejudicar o país há vários anos.