Conversa de moucos

Mário da Costa
A relação dialógica de uma Companhia de Teatro com uma Direção Regional de Cultura

E assim ficam registados estes factos para descarga fisiológica da minha consciência e memórias vindouras.

A meu pedido, fui recebido pela Directora Regional da Cultura do Centro, em Coimbra.

Estranhou ver-me, alegando como saudação que se faziamos 25 anos de existência e nunca tinhamos pedido nada à Secretária de Estado da Cultura, estando a fazê-lo agora só podia ser sinal de estarmos a perder qualidades.
– Como assim, perder qualidades?
– Se vocês como Companhia de Teatro se conseguiram “desenrascar” durante tanto tempo, sem precisarem de “pedinchar” e agora o fazem, só pode significar que já não têm o mesmo talento.
– Talento artístico, quer a senhora dizer?
– Não, talento para se safarem. Encontraram um nicho de mercado que vos satisfez e agora que as câmaras estão “tesas” é que nos vêm apoquentar.
– E a senhora faz esse discurso a todos os grupos e companhias de teatro ou só a nós?
– Não têm nada que se comparar com ninguém. Vocês não atingem os critérios das outras companhias…
– Será então por no ano passado, em 366 dias, temos apresentado 742 espectáculos tanto em Portugal, como em Espanha, Itália, França e Alemanha?
Teremos critérios a mais?
– Vocês são muitos. 32 actores é injustificável. Façam como as outras companhias, despeçam pessoal e fiquem só com 3 ou 4 actores.
– E quando precisarmos de 15 ou 30 actores?
– Vocês querem ser mais que os outros? Têm mais olhos do que barriga? Contratem aqules que precisam para esse evento por um período curto.
– E como fazemos com a especificidade do nosso trabalho de Recriação Histórica?
– Contratem só para esses dias.
– Mas os actores em geral não têm formação específica nas disciplinas em que mais os necessitamos. É obrigatória toda uma preparação e treino que leva meses. Estamos a falar de equitação, esgrima, trapézio, acrobacia aérea, teatro vertical, teatro de rua, de noções mais profundas de História além de um conhecimento mais categorizado sobre o nosso passado e sobre o património cultural e histórico de Portugal.
– Então arranjem alternativas para ganhar dinheiro e serem autosuficientes.
– E com os outros grupos, a senhora também faz este discurso?
– Há outros grupos que desenvolveram um excelente trabalho e não sabem “desenrascar-se” tão bem como vocês. Têm de ser apoiados. Porque é que vocês não procuram outros mercados? Espanha, por exemplo. Decerto terá boas saidas para o vosso trabalho…
– E será que não temos o direito de ficar em Portugal? Nos outros países onde vamos e queremos continuar a ir, apesar de falarmos a língua local, só a conhecemos na versão contemporânea e abordamos a História desse país ao de leve enquanto que em Portugal, nos orgulhamos de possuir um conhecimento sólido da História portuguesa, enriquecendo-nos constantemente com as novas achegas sobre o nosso passado e dominando as “nuances” da língua portuguesa ao longo da nossa História. Por outro lado, para quê exportar-nos se fazemos cá falta?
– Fazem cá falta?
– Fazemos. Não temos o exclusivo da Recriação Histórica em Portugal mas pautamos a nossa actividade pelo rigor histórico e por devolver a memória do nosso passado ao povo além de valorizarmos interactivamente o nosso património material e imaterial.
– Mas vocês fazem sempre o mesmo, não é? Coisas medievais…
– E romanas, renscentistas, barrocas, restauração, período liberal, guerras peninsulares, consoante a encomenda, investigamos, preparamos o trabalho e apresentamos. Estamos habilitados a recriar as andanças piratas no nosso país, tanto nos séculos XVI e XVII como no séc. XVIII. Já recriámos as invasões normandas e vikings em Portugal nos séculos X e XI, além de abordarmos com alguma desenvoltura o período mouro no território peninsular e a presença sefardita.
– Sim, mas é tudo igual, é medieval…
– Minha senhora, viajamos no tempo e no espaço, atravessamos os séculos, convivemos com as personagens históricas do nosso passado, recriamos a História, na medida dos possíveis. Nem de perto, nem de longe nos esgotamos na Idade Média.
– Mas é o que se vê mais, é o medieval e isso já está muito visto.
– Minha senhora, só no ano de 2010 apresentámos 46 teatralizações da 1ª República em 46 localidades do país, temos abordado a Belle Epoque, a 1ª Grande Guerra, a Guerra Civil em Portugal em meados do Séc. XIX e a Guerra Civil em Espanha no 1º quartel do séc. XX. Já abordámos, na História recente, várias teatralizações do tempo de Salazar, do maio de 68 em Paris, das revoltas estudantis e populares em Portugal durante o Estado Novo, a guerra colonial, a repressão da Pide, a emigração e a Revolução dos Cravos de 1974.
– Então estão fartos de ganhar dinheiro com tanta coisa… porque é que vêm aqui?
– Porque nos sentimos legitimados a ser apoiados pela tutela cultural deste país.
– Mas daqui não levam nada. Tirem o cavalinho da chuva… chuparam as Câmaras e agora querem chupar o Estado.
– Minha senhora, face à sua surdez aconselho-a vivamente a demitir-se do cargo político que ocupa por desvitalização das suas reais funções.
– Não me diga que ainda se vai pôr a cantar a Grândola…
– Minha senhora, não será decerto pela minha boca que terá o prazer de aprender a letra da Grândola…
– Pode considerar esta reunião terminada. E vá apertando o cinto.
– Minha senhora, passe bem, se puder, quanto ao cinto já não se pode apertar mais pois comemos-lhe o couro.
Mário da Costalogodirector da Companhia de Teatro Vivarte, Laboratório de Recriação Histórica, associação de utilidade pública e com estatuto de superior interesse cultural

Comments

  1. xico says:

    Diga-me, por favor, que isto não foi uma recriação histórica sem rigor!? É que custa a acreditar…

  2. Luis says:

    Foi mesmo real? Estou como o xico :”custa a acreditar”

  3. Filhos da puta de Salazarentos. Continuam a destruir a história 4 décadas depois de se ter acabado com o regime.
    Quem se recusa à solução fácil de sair do país e deixar tudo cair é um verdadeiro patriota.
    E eu nem sequer aprecio muito o teatro nem a história do país, mas destruir ambos é coisa para mentecaptos para quem turismo são praias sem areia e cultura são carros a entupir o Porto.

  4. Um governo fraco e manipulador precisa de uma “audiência” o mais estupidificada possível. Dinheiro para cultura? Era o que mais faltava…

  5. LUIS COELHO says:

    POIS É! O MAL É QUE O QUE TEM PASSADO PELO DESGOVERNO DESTE PAÍS DE HÁ MUITAS DÉCADAS A ESTA PARTE, É A ESCÓRIA DA NOSSA DEBILITADA MASSA HUMANA, E SE ALGUNS HOMENS BONS (QUE EU ACREDITO QUE AINDA OS HAJA) NÃO FIZEREM O QUE TEM DE SER FEITO PARA REVERTER ESTA SITUAÇÃO MUITO RÁPIDAMENTE, VAMOS CONTINUAR CADA VEZ PIOR POR MUITAS MAIS DÉCADAS.

  6. parece claro do discurso que por existir já todos nos achamos com direito ser subsidiados; e que ate a dita “fera” tem um discurso da treta.realmente eleitores ponham o os olhos em quem andam a votar e como é gasto o erario publico. Passem po http://www.tretas .org e colaborem.

  7. Eu bem digo que são todinhos nazifascistas. O Sr. Mário fez bem em não responder à letra às provocações daquela nazi, nem lhe ter partido a cara que era o que ela queria e merecia.

  8. Em um outro ambiente diria mesmo que daria uma profunda peça teatral do absurdo… Mas é o que reflete a Cultura do Portugal actual que se esquece de si próprio para se prostituir perante uma falsa promessa… Apoiado amigo Mário da Costa e toda Companhia de Teatro Viv’arte que tão preciosos momentos tanto de aprendizagem, vivência e difusão tem feito por todos nós. Um Forte Abraço.

  9. Luis Viola says:

    sabem que este tema daria uma peca teatral digna de ser a comedia mais vista de sempre. So e pena que nao seja ficcao.

  10. maria de castro ferreira says:

    Quem com ferros mata, com ferros morre!
    Companhia de teatro Vivarte, uma escola de actores, guerreiros, cavaleiros, artistas, pioneiros que sempre se bastou a si própria. Agora, num tempo em que as recriações “históricas” proliferam com vista apenas ao lucro fácil onde vale tudo, sem o rigor a que nos habituaram estes mestres, são colocados para fora sobrevivendo conforme podem, fazendo todo o tipo de sacrifícios. De mim têm todo o respeito e tiro-lhes o meu chapéu! Portugal é isto que se viu nesta entrevista. Uma chacota, um desdém pelo que é de valor! Cultura?! Que é isso?! Invista-se em hotéis e turismo em massa que eu e uns quantos queremos é viver na ilusão de um tempo ido que alguns recriam com sangue, suor e lágrimas! Sei do que falo!
    Bem hajas Mário da Costa e a tua Vivarte!

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