Aquele conselho tonto – não voltes aos sítios onde foste feliz – não é para levar a sério, a gente aprende isso, mas de tanto ouvi-lo por vezes acreditámos nele, e traçamos curvas no caminho e até andamos às arrecuas para evitar o desencanto, como se pudéssemos fugir dele. Por isso andei eu anos a fio a fugir de um filme que me deixou enredada numa espécie de encantamento quando era criança, com medo de agora achá-lo indigno desse encantamento. A desculpa oficial é que o filme nunca me aparecia em DVD, jamais o apanhava nas televisões, e na internet apenas encontrava fragmentos, que tampouco queria ver, porque, justificava-me, só queria vê-lo íntegro, como no passado. Claro que eu podia ter procurado mais se não fosse o medo de macular a sua existência perfeita na minha memória. “Foste feliz ali, não queiras regressar”, uma parvoíce.
Nestes primeiros dias do ano, decidida a corrigir falhas várias, e a gente tem sempre de começar por algum lado nesses ingénuos propósitos de início de ano, lembrei-me dele e encontrei-o, agora sim, de ponta a ponta, na internet, e sentei-me por fim a rever o que já não recordava e a descobrir que alguns farrapos de memória, de origem incerta, provinham daí. O filme tinha deixado a sua semente na minha imaginação e essa semente germinara de uma forma surpreendente. Descobri que uma ideia que há muito me atormenta e sobre a qual queria escrever é, de forma metafórica, a premissa do filme. Talvez eu não tivesse idade para compreender o filme, na época em que o vi, e por isso o tenha visto com os olhos do coração, e isso explique porque, não o recordando bem, ele me acompanhou por tanto tempo.
O filme chama-se “O retrato de Jennie”, foi realizado em 1948, pelo alemão William Dieterle, protagonizado por Jennifer Jones e Joseph Cotton, e é uma dessas histórias ultra-românticas que Hollywood já se dedicou a produzir, quando o mundo era menos cínico, ou melhor fingidor. Esta história tem, porém, a particularidade de contar o impossível, uma história de amor entre pessoas que não viveram no mesmo tempo e ainda assim se encontraram. Uma história impraticável, irracional, contada com imagens poéticas e oníricas, uma fábula em que o tempo, a vida e a morte não são mais do que parte do grande mistério do qual sabemos todos muito pouco.
A “O retrato de Jennie” junto sempre outros dois filmes, cujos enredos e atmosferas me parecem ter muito em comum, e dos quais não gosto menos: “Vertigo”, de Alfred Hitchcock e “The Ghost and Mrs Muir” (em português, pateticamente traduzido como “O fantasma apaixonado”), de Joseph L. Mankiewicz. Não é tanto o enredo romântico que todos partilham que me interessa, mas a forma como neles se dobram as rígidas barreiras do tempo, como se questiona o que é real e sonhado, o que há nos outros de criação nossa, e vice-versa, o que há de verdadeiro nas nossas rígidas convenções sobre vida e morte.
Quando Jennie aparece pela primeira vez a Eben, um pintor fracassado, é uma criança. De cada vez que reaparece, está mais velha, anos mais velha, e assim vai percorrendo uma década durante os escassos meses em que duram as suas aparições. Há nela algo de anacrónico, conta memórias de um tempo antigo, recorda aquilo que não podia ter conhecido. Eben espera sempre pelas aparições, que nada têm de fantasmagórico, em nada são menos reais do que a sua interacção com os outros, e nos intervalos procura encontrar-lhe a pista. Assim acaba por descobrir que aquela mulher viveu, sim, muitos anos antes, e morreu, e que por muito real que seja a sua presença na sua vida, tão real que ele guarda no bolso o lenço que ela deixou esquecido num primeiro encontro, tão real que o retrato que ele dela pintou o tornará num artista de sucesso, os seus encontros nunca foram possíveis porque as suas vidas jamais partilharam o mesmo tempo. Foi irreal? Um sonho? Para Eben não foi. E nós, que sabíamos que é dessa suspensão da descrença que dependem tanto a ficção como o ilusionismo, adivinhámos desde o início que nos pediriam que acreditássemos no impossível e aceitámos.
O filme, cuja produção foi bastante cara, foi um fracasso de bilheteira. Os surrealistas amaram-no, e não será de espantar que assim tenha sido. Luis Buñuel incluía-o sempre na lista dos seus filmes favoritos, e dele disse, na sua biografia “Mi último suspiro” que era um filme misterioso e poético.
Se houve algo que me surpreendeu neste meu regresso ao filme foi o facto de não me lembrar de uma personagem secundária, interpretada pela notável Ether Barrymore, uma solteirona que começa por parecer-nos avinagrada mas acaba por tornar-se na protectora de Eben. Não sabemos se ela acredita na história dele, ou se lhe basta que ela seja verdadeira para ele. Mas é da sua boca que ouvimos a frase que nos tranquiliza: “À medida que envelhecemos, aprendemos a acreditar em muitas coisas que não conseguimos ver.”
Ou que vemos com outros olhos, também poderia ela dizer. Daqui a outros trinta anos, não prometo antes, hei-de regressar ao filme e descobrir em que novas coisas passei a acreditar.
(Lamento não poder deixar aqui o filme legendado em português, apenas consegui a versão original, sem tradução, mas a quem tiver chegado a esta última linha não posso deixar de convidar a ver ou a rever esta história:
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