Não bate a bota com a perdigota… ou o sistema eleitoral britânico em todo o seu esplendor

Jorge Martins

Se dúvidas houvesse sobre as injustiças do sistema eleitoral utilizado no Reino Unido, elas dissipar-se-iam com a análise dos resultados das eleições da passada quinta-feira.
Desde sempre que os deputados ao parlamento de Westminster são eleitos em círculos uninominais numa única volta. Este sistema maioritário é vulgarmente conhecido por “first past the post”, em alusão às corridas dos cavalos, onde só interessa o vencedor, ou seja, o primeiro a passar o poste da meta. O segundo é o primeiro dos últimos, qualquer que seja a distância a que ficou do primeiro. Logo, apesar de a hipótese ser absurda, é teoricamente possível um partido ser o mais votado a nível nacional e não eleger ninguém, bastando, para isso, ser segundo em todos os círculos. Em contrapartida, outra força política pode eleger um representante ganhando um círculo e tendo zero votos em todos os outros.
Na prática, este sistema favorece os maiores partidos, em especial se tiverem grande implantação numa parte do território. Os partidos de média dimensão, com o eleitorado disperso pelo país ou região, são os mais prejudicados. Por isso, tende a favorecer o bipartidarismo. Porém, pode haver exceções: pequenos partidos com o eleitorado concentrado numa parte do território (como os partidos regionalistas/independentistas ou étnicos) podem eleger um número significativo de representantes. É o que sucede no Canadá, com os independentistas quebequenses do PQ ou, na Índia, onde uma enorme série de pequenos partidos regionais obtém representação parlamentar.
No caso concreto do Reino Unido, onde são eleitos 650 deputados, uma simples apresentação dos resultados e da sua evolução face às eleições de 2010 fala por si. Vejamos:
a) os conservadores, com apenas 37% dos votos, obtém uma maioria absoluta e, apesar de apenas terem aumentado a sua votação em 0,8%, aumentam a sua representação em 24 lugares (de 307 para 331);
b) os trabalhistas subiram pouco (cerca de 1,5%) mas, devido ao “banho” que levaram na Escócia, perderam 26 assentos, passando de 258 para 232;
c) os liberais-democratas tiveram uma forte derrota, mas, se já estavam sub-representados antes (23% dos votos e apenas 57 lugares), agora, com apenas 8% dos votos, ficaram reduzidos a oito representantes;
d) o UKIP, que obteve 12,6% do voto popular, só conquistou um mandato;
e) os Verdes, que passaram de menos de um para quase 4%, apenas conseguiram manter a deputada que tinham eleito em 2010;
f) os nacionalistas escoceses do SNP só concorreram na Escócia, onde obtiveram 50% dos votos e tiveram uma subida espantosa (mais 30% que no último ato eleitoral) mas conquistaram 56 dos 59 lugares atribuídos à região contra os seis que anteriormente detinham, pelo que, apesar de terem menos de 5% do voto nacional, se tornaram no terceiro maior partido parlamentar;
g) os nacionalistas galeses do Plaid Cymru, com 12% do eleitorado de Gales e 0,6% a nível nacional, voltaram a eleger três deputados;
h) na Irlanda do Norte, onde o voto está refém do conflito entre católicos e protestantes, a maior divisão do voto católico levou aos resultados que se seguem: os radicais protestantes do DUP obtiveram oito lugares em Westminster (tantos como os LD), com os mesmos 0,6% dos votos no conjunto do país, correspondentes a 26% dos votos regionais, mas os nacionalistas católicos do SF, com uma votação quase idêntica (cerca de 25%) apenas elegeram quatro, enquanto os unionistas protestantes moderados do UUP, com 16%, conseguiram apenas dois lugares contra três dos nacionalistas católicos moderados do SDLP, que apenas obtiveram 14%. Para completar, o partido da Aliança (multiconfessional, mas com apoio entre os protestantes mais liberais), apesar de ter subido 2,2% na votação, perdeu o seu único representante.
Dizem os defensores do sistema que ele facilita a formação de governos maioritários e, portanto, maior estabilidade governativa, ao mesmo tempo que facilitará uma maior relação entre os eleitores e os seus representantes. Se a primeira é verdadeira (embora possamos questionar o seu valor no plano político), a segunda é falaciosa, pois um eleitor de esquerda não se sentirá representado por um deputado de direita e vice-versa. Defendem, ainda, que facilita a participação de candidatos independentes, mas esta também é possível nos sistemas proporcionais. Outro argumento é o facto de afastar as forças extremistas do parlamento, mas, em democracia, as ideias combatem-se de forma leal e não com a marginalização dos adversários do debate. Discordo abertamente de quase tudo o que o UKIP defende, mas não acho justo nem democrático que um partido que obteve 12,6% dos sufrágios tenha apenas um representante em 650 (cerca de 0,15% dos parlamentares).
Para além da distorção dos resultados acima eloquentemente demonstrada, favorece o chamado “voto útil” nos partidos capazes de vencer no círculo. Logo, os partidos minoritários e dispersos pelo território são duplamente penalizados: quer pela mecânica do sistema, que pelos efeitos psicológicos que ela gera nos eleitores. Além disso, permite que alguns deputados se possam perpetuar no parlamento, fazendo-os candidatar nos chamados “círculos seguros” (onde o seu partido tem a vitória quase garantida) e leva a que as forças políticas concentrem a campanha apenas nos círculos mais competitivos.
Como se pode ver, as desvantagens superam, claramente, as vantagens. Quanto mais não seja porque o Parlamento eleito não reflete, de forma fiel, a vontade expressa pelos eleitores nas urnas.

Comments

  1. Foi o sistema que permitiu a eleição de governos que criaram o Serviço Nacional de Saúde e o welfare state, o mesmo que permitiu Churchill e o que Churchill perdesse as eleições depois ganha a guerra.
    É o sistema que permite que saber quem é o seu deputado, que sabe que depende do seu voto e que, por isso, sabe que não está no Parlamento para ensinar o povo, mas para cumprir um mandato.
    É o sistema de um país em que o zé da esquina tem mais poder para se proteger do governo do que alguém da classe média-alta em Portugal ( e mesmo do que a malta que, aqui, foi colega de faculdade e de copos deles).
    É o sistema em que não precisa de BI para votar (BI que foi queimado numa noite de S. João, após a guerra, mal o governo da altura murmurou que o papelucho se podia manter), porque o que mais faltava era que duvidassem da sua palavra.
    É o país onde a inquisição (que não houve) não persiste, como aqui, os seus vergonhosos métodos e tiques, à direita e à esquerda.

  2. A fraude eleitoral agora é uma questão de confiança no eleitor.

  3. Jorge Martins says:

    Obrigado pela partilha, João José. Peço-te apenas que corrijas uma pequena “gralha” na alínea b): os trabalhistas obtiveram 232 lugares e não 332. Já corrigi no original.

  4. Então o paradigma de J. Martins é a Assembleia de Republica Portuguesa, esse refulgente exemplo de independencia dos eleitos face aos Directorios partidarios ? Assembleia onde o menor indicio de dissidencia traz logo a obliteração do nome do culpado das próximas listas ? Aguardo ansioso que diga quantos e quais foram os deputados da maioria que nas votações se declararam contra medidas do seu Governo . Não apenas nos ultimos meses ou semanas, mas durante toda a legislatura que agora acaba !
    Olhe que aqui as revoltas de Membros do Parlamento contra o seu próprio Governo foram várias, como várias foram as humilhantes derrotas que por isso esse mesmo Governo sofreu!
    Portanto entre este sistema, com os seus inegaveis defeitos, e uma Assembleia que mais parece um armazem de sacos de batatas, escolho o primeiro.
    Para finalizar um necessário caveat: Orgulhosamente conto-me entre os derrotados da passada Quinta-Feira.
    manuel.m

    • Bom mesmo era um parlamento só com PS e PSD, talvez dois ou três deputados do PCP. Isso é que era, tivéssemos nós círculos uninominais como na democrática Inglaterra.

  5. Anasir says:

    E chamam a isto democracia…

    • É uma democracia sim senhor. Lá sabem quem os representa mesmo que não tenham votado nele. Aqui você sabe quem foi eleito pelo seu distrito? Quem o representa? Prefiro muito mais a democracia inglesa do que uma democracia corrupto editatorial como a portuguesa. E nota-se nos politicos que quando são apanhados em algum escandalo se demitem enquanto por cá teimam em fazer-se de santos e mentir nas comissões parlamentares rodeados de amiguinhos.

      • Os deputados à Assembleia da República representam a Nação e não concelhos nem distritos. Os círculos distritais existem por receio da dispersão partidária.
        Deveria existir um só círculo, Portugal, onde todos os votos contassem – divida-se o nº total de votos válidos pelo, nº de deputados o resultado seria o nº de votos para eleger um deputado. Se uma lista queria um deputado alentejano que o inclui – se em lugar elegível. Agora, votar CDU não vale nada em muitos círculos (11 no mínimo)

        • José Manuel Faria, o último parágrafo do seu comentário é redutor. Os votantes que não contribuiram para a eleição de nenhum deputado, não esgotaram nesse acto a sua participação cívica em todas as esferas da vida social. Por exemplo: Num concelho de 30.000 habitantes apenas 1.000 votaram no PCP (o destaque é seu) esses 1.000 votantes ao contrário do que diz “podem valer muito” não em assentos na AR, mas nas lutas que serão travadas nas empresas, organizações desportivas, culturais e outras. Dir-me-á que o podiam fazer na mesma até sem votarem, mas, não é a mesma coisa.. Terem uma ligação à um grupo organizado é indispensável para que haja a possibilidade de sucesso nas lutas que se desenvolvem em todas as esferas da vida social. E porque a esperança é a última a morrer, espero também que o exemplo acima de 1000 possa nas próximas serem 2.000.
          E porquê responder ao final do seu comentário: porque o considero um panfleto com intenções bem defendidas: desencorajar os votantes no PCP, onde o Partido tem menos expressão eleitoral. Se não fosse assim porque não evidenciar o CDS. E se alargar a mesma discussão às autárquicas….

        • A nação? Já a encontrou? Os deputados não representam abstracções, representam indivíduos com capacidade eleitoral.

          • “deputados eleitos. Representa todos os cidadãos.
            Os deputados são eleitos pelos portugueses para os representarem ao nível nacional. Assim, embora sejam eleitos através de círculos eleitorais representam todo o país e não o seu círculo.
            Só podem concorrer à Assembleia da República pessoas integradas em listas de partidos políticos.
            Qualquer português pode ser candidato, desde que um partido o inclua nas suas listas.
            Cada partido elege deputados proporcionalmente ao número de votos que recebe em cada círculo eleitoral.
            As eleições para a Assembleia da República realizam-se de 4 em 4 anos, mas a esta legislatura pode ser interrompida pela dissolução da Assembleia caso em que se recorre à realização de novas eleições.
            Nas eleições legislativas, os portugueses votam no partido que consideram que deve ser chamado para o governo ou no que pensam que melhor os representa.”

      • ZE LOPES says:

        Sei perfeitamente quem foi eleito pelo meu círculo. E nenhum me representa. Há quem me represente, mas não foi eleito pelo meu círculo. Ponto final.

      • Anasir says:

        A honestidade dos políticos não tem nada a ver com a qualidade da democracia. Tem a ver com os povos…

        • Parece-me bem melhor dizer o inverso: Os Povos têm a ver com a qualidade da Democracia, que por sua vez tem a ver com a honestidade dos politicos.
          A representação da vontade popular expressa em votos é um problema sem soluções perfeitas, o que não quer dizer que não haja umas melhores do que outras.
          Para estes debates é que o Aventar existe.
          manuel.m

  6. exceções falta-lhe um p, lê-se excessões.

    • ahhhhhh vossa excelência gosta do novo acordo tão bem imposto pelo fascista do cavaco silva. aquele que tem ódio à língua, cultura, e identidade portuguesa. seguir o cavaco é de obra.

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