Imperfeito

Começa-se por tropeçar num tempo verbal: o pretérito imperfeito. Quem já não está connosco gostava, ria, comia, ia, costumava. O presente já não é possível porque o nosso presente não o é para ele, e apenas nos resta mantê-lo entre nós com esse artifício do pretérito imperfeito, situado num passado repetido na nossa memória, transformado num presente que é agora também imperfeito porque não existe. Digo “ele gosta” e logo me dou conta da impossibilidade, habituo-me à imperfeição do pretérito, obrigo-me a corrigir o tempo verbal como se o rigor gramatical fosse um auxiliar de cura, uma terapia, quase um amigo. “Ele gostava”.

Um verbo corrige-se, mas há frases que não podem ser ditas. Formulam-se mas morrem na boca. “Vou perguntar-lhe”. “Tenho de contar-lhe”. “Ele vai querer ver isto”. São tão rápidas, o hábito permite-lhes essa prontidão, mas não sabem que pertencem a outro tempo, que deixou de haver lugar para elas. Como quando acordamos e a trama espantosa de um sonho parece ainda verosímil, arrasta-se por momentos para a realidade e intromete-se nela como se não fosse uma intrusa, e é só mais tarde, quando a sua incongruência se evidencia, que assistimos ao desmoronamento dessa construção mental. Não poderás contar nem perguntar-lhe nem ele verá nada mais, e essas frases, absurdas, devem desaparecer.

E então constato que ele não saberá nada mais do que me acontecerá. Tudo o que eu viver será, para ele, desconhecido, ignorado, como acontece com aqueles amigos de quem nos perdemos e a quem, num encontro ao fim de décadas, não sabemos como contar tudo o que aconteceu, para logo descobrirmos que duas ou três frases chegam para o mais importante.

A vida seguirá e eu também; ele não, mas a sua memória, conjugada num imperfeito pretérito, o dos factos passados que não acabam inteiramente de passar, essa ficará. Como no final desse poema de Drummond de Andrade: “As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis / à palma da mão. // Mas as coisas findas, / muito mais que lindas, / essas ficarão.”

Foto: Carla Olas

Comments

  1. Carlos Fonseca says:

    Carla, minha amiga. belo texto. Belo, aliás, como de costume; todavia, neste caso, sofrido nas profundezas da alma. Permito-me a citar um escrito de Marcel Proust em ‘A Raça Maldita” sobre o imperfeito do indicativo:
    “Confesso que determinado emprego do imperfeito do indicativo – desse tempo cruel que nos apresenta a vida como qualquer coisa simultaneamente efémera e passiva, e no próprio instante em que descreve as nossas acções as afecta de ilusão, anula-as no passado sem nos deixar, como o perfeito, a consolação da actividade – para mim se manteve uma fonte de misteriosas tristezas. […]
    Tenho ligeira ideia da tristeza e da saudade que, nestes casos, só o próprio sabe o que sente. Um beijo de amizade.

  2. Carlos Fonseca says:

    “Permito-me citar”, queria eu dizer.

  3. Paula Sofia Luz says:

    <3