Olhares sobre as legislativas 2015: Cidadania subdesenvolvida

Ana Moreno

A abstenção é apenas uma das faces do estado imaturo em que se encontra o exercício da cidadania em Portugal. Mas ir votar é apenas uma das manifestações de cidadania, a mais pontual. De muitas outras, um exemplo bem actual que evidencia essa imaturidade é o facto de, a quatro dias de terminar o prazo da Iniciativa de Cidadania Europeia auto-organizada contra o Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento (TTIP), Portugal ser uma das 6 desonrosas excepções (juntamente com a Estónia, Lituânia, Letónia, Chipre e Malta) dos países europeus que ainda não conseguiram alcançar o quórum representativo para o país. Em todos os outros países europeus o respectivo quórum foi mais do que largamente ultrapassado e no total a Iniciativa foi já subscrita por mais de 2,9 milhões de europeus.

O tema de fundo de ambos os casos é o mesmo: o exercício da cidadania, que é a base de sustento de uma democracia viva, é minimalista, tosco, porque os cidadãos se recusam a ter uma participação vigorosa e organizada. Perante a dureza fuzilante de uma política de austeridade apontada contra os que menos têm, empobrecendo-os até à vergonha através da retracção crescente do estado social e do desemprego; perante a desapropriação e poluição do espaço nacional que a todos deveria pertencer, através de privatizações e concessões, como a concessão de direitos de prospecção e exploração de petróleo e gás natural em terra e no oceano ao largo da costa algarvia, a poucos quilómetros de áreas designadas de protecção e conservação; perante a proliferação de parcerias público-privadas que socializam os custos e privatizam os lucros; perante a ferida social e económica que representa a perda de jovens qualificados que emigram por receberem salários irrisórios, deixando os governantes indiferentes… perante tudo isto, uma grande parte da população acha que não tem nada que ir votar “porque são todos iguais” e outra grande parte vota nos mesmos ou quase, sabe-se lá porquê.

Ou seja, faz-se de tudo impunemente e mesmo assim, quando as pessoas têm oportunidade de ter uma voz clara de protesto, fica tudo (quase) na mesma. Pratica-se a solidariedade familiar e uma certa solidariedade caritativa, mas as pessoas não expressam significativamente um protesto nem actuam eficazmente. Haverá para tal múltiplas e diversificadas razões, já analisadas com toda a pertinência (quem sabe se estou a falar mais ao menos daquilo a que José Gil chama a não-inscrição?), mas as que mais saltam à vista a quem vê o país desde o exterior são as seguintes:

1. Desinformação:
O quarto poder, os média, é em Portugal tão opaco e arrogante que simplesmente não trata o que não lhe apetece, por mais relevante que seja para a vida dos cidadãos (exemplo: TTIP); a qualidade da informação é paupérrima, aposta-se sobretudo na promoção de egos e oráculos “do deita a baixo” ou da mentira, o jornalismo investigativo é quase inexistente; consequentemente, as pessoas, mesmo que quisessem, não poderiam estar bem informadas – o primeiro sustentáculo da cidadania não existe.

2. Aversão à organização:
A aversão intrínseca do povo português à organização é patente tanto no mais banal – como por exemplo, a monstruosidade que é a estação de Entrecampos, onde é quase impossível saber-se atempadamente em que linha se pode apanhar o comboio pretendido-, como em questões mais elaboradas, como a repugnância em participar em iniciativas de defesa de direitos dos cidadãos; a simples opção por um partido já é considerada uma afronta ao direito do livre pensamento, a aderência a uma mobilização organizada equivale, no geral, a um carimbo de estupidez natural. Creio que essa aversão decorre, pelo menos em parte, de um individualismo exacerbado, que descamba em pretensiosismo mal alguém chega a um lugar de destaque e em prepotência, quando se está como funcionário a fazer um serviço público. Acontece que as sociedades só podem funcionar organizadas e a democracia requer organização. A recusa ingénua de organização “porque não” resulta numa realidade que funciona sem funcionar, numa cidadania tolhida.

3. Descrença
Seja pela experiência de uma revolução caída do céu com objectivos a longo prazo considerados por muitos como gorados, seja pela experiência da impunidade reinante em relação à corrupção tanto graúda como miúda, seja pelo que for, o povo português está céptico, desesperançado e desencorajado até ao mais profundo âmago. O resultado é uma enorme falta de coragem para experimentar e se empenhar em algo de novo e um cinismo generalizado que aposta apenas no chico-espertismo e no salve-se quem puder. Quando alguém se aventura a empenhar-se por “um mundo melhor” recebe na hora e no melhor dos casos o epíteto de lírico.

4. Cansaço e preguiça
Não há vez nenhuma em que fale com os meus amigos em Portugal e que não ouça casos absurdos de dificuldades da vida pessoal: uma amiga diabética que está há 4 anos à espera de uma consulta de oftalmologia no Hospital Egas Moniz, uma outra que anda há anos a tentar conseguir reunir tudo o que são requisitos burocráticos para registar uma marca de sabões naturais, as horas que se passa a tratar de obrigações cívicas, como, por exemplo,  estar 4 horas numa secção da AT à espera de receber informação sobre como declarar rendimentos e por aí fora. Daí resulta naturalmente um enorme cansaço das pessoas, que lhes retira a energia necessária para participarem e defenderem os seus direitos. Cansaço esse tanto maior, porque na maior parte dos casos, por mais que se tente, não se consegue alterar nada, “está-se sempre a bater na parede”, como dizia uma amiga. A justiça não funciona e em grande parte dos casos as instituições – e o respectivo pessoal – estão sempre prontas a achincalhar as pessoas, macerando-as e quebrando-as. A conseguir-se algo, é pela via dos conhecimentos, do compadrio, da “delicadeza”.

Esse cansaço e a falta de sucesso do protesto justo torna-as também preguiçosas para além do compreensível, levando-as a barafustar com quem está ao guichet – que por sua vez assume imediatamente a queixa como ataque pessoal – em vez de se darem ao trabalho de pedir um livro de reclamações (porque afinal, “não adianta nada”); a ver programas de televisão de baixo nível em vez de lerem informação substancial; a abster-se em vez de votar.

Haverá outros, mas parece-me que estes são elementos que estão na base desse lamentável estado de subdesenvolvimento em que se encontra a cidadania em Portugal.

Muitos refugiam-se no humor (negro), ao que eu diria que preferiria ver os portugueses a rirem-se menos, mas a serem mais felizes.

Seja como for, acho que mereceria o Prémio Nobel da Cidadania quem descobrisse como conseguir que os portugueses voltem a acreditar que os direitos têm de ser conquistados e que é preciso informarem-se, mobilizarem-se, empenharem-se e organizarem-se para conseguirem melhorar o país e a sua própria vida.

Esperem para ver a manifestação no dia 10 de Outubro em Berlim (acho que pela dimensão, o telejornal não vai poder deixar esta informação de fora). É gratificante ser apenas um cidadão incógnito numa multidão de cidadãos que interferem, organizados, construtivamente na vida pública.

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“Olhares sobre as legislativas 2015” é uma série de perspectivas diferentes, políticas ou não, num espaço de temática marcadamente política. Escreva-nos.

Comments

  1. Deixa aqui alguns tópicos que são aceitáveis, mas parte do princípio que os eleitores são parvos ou deficientes.
    Já se partir do principio que os eleitores sabem o que querem, e já agora o que náo querem, deduziria que não votam nos que já os enganaram tres vezes(banca rota) , mas não encontram nos incumbentes, suficiente segurança, para confiarem nas líricas propostas (alguma delas muito irrealistas), e inclusivamente nos aluados que as declaram.
    Acha que um chefe de família acha razoavel:
    sair do euro,nacionalizar empresas,não pagar o que se pediu,impor-se a quem nos emprestou dinheiro,aumentar as pensões, subsidiar os animais domesticos,impor aos empresáriso a criação de empregos ou manutenção dos que existem,considerar todos os politicos como potenciais criminosos…. enfim ainda há mais perolas nos programas dos partidos, que devem estar lá porque as pessoas nem os lêem.

    • Nightwish says:

      Nem o cristo os leu. Mas deixe lá, o país está muito bem e no bom caminho.

  2. Filipe says:

    Muito bom.

  3. Nightwish says:

    “Cansaço esse tanto maior, porque na maior parte dos casos, por mais que se tente, não se consegue alterar nada, “está-se sempre a bater na parede”, como dizia uma amiga. A justiça não funciona e em grande parte dos casos as instituições – e o respectivo pessoal – estão sempre prontas a achincalhar as pessoas, macerando-as e quebrando-as.”

    Orwell teria muito a dizer sobre o assunto, se é que não o disse.

  4. Ana A. says:

    Subscrevo (tristemente) o diagnóstico.

  5. Ana Moreno says:

    Traduzo-vos o título da reportagem de hoje sobre as eleições em Portugal, no primeiro canal da TV alemã (ARD):

    Portugal: Eleições no país do aluno exemplar

    Portugal e os seus eleitores bem comportados e discretos são usados para legitimar a aplicação das receitas impostas…, porque estão a funcionar…

  6. Ana Moreno says:

    Acham que sim???

  7. Ana Moreno says:

    MESMO?????????

    Aqui vai também a tradução de um dos comentários à mesma reportagem:
    – Desemprego juvenil: 34%;
    – Cerca de 600.000 pessoas já abandonaram o país;
    – … antes da crise ele trabalhava 8 horas por dia como taxista; hoje trabalha 14 horas; pelo mesmo dinheiro;
    – O nível económico e social é tão baixo, que a mínima mudança já é considerada positiva;
    Ah! e a dívida de Portugal ascende actualmente a 130%…
    Mas afinal qual é a verdade? Trata-se mesmo de um aluno exemplar??
    ————————————-
    Sem comentários….

    • Ana A. says:

      “…aluno exemplar…”, “…porque estão a funcionar…”
      Os senhores de Bilderberg pretendem criar países de escravos, que pouco mais podem aspirar do que à sobrevivência. Se está a resultar?! Então não?!

      • Analisa says:

        Mas só resulta porque tem a conivência dos governos dos países democraticamente eleitos. Ou seja, aqui ninguém se safa de responsabilidade.
        … snifff

    • o que é cpaz de estragar a sua “teoria” de que os alemaes querem , é que quem provocou a dívida impagãvel, foram os nossos queridos socialistas portugueses!! Capiche?

  8. Ana Moreno says:

    Quem se vai pronunciar sobre se sim, ou se não, é o povo português, já amanhã…. e esses que segundo diz “pretendem criar países de escravos”, aliás tanto dentro como fora de portas, vão ficar contentíssimos se os seus ajudantes aí forem recompensados por serem alunos tão exemplares que até o povo os bem-quer.
    O meu voto sincero – já que não posso votar a sério – de que o masoquismo não vença amanhã.

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