E cinema para todos

Se, nesta época de Natal, a cada um fosse dada a possibilidade de pedir um presente que beneficiasse a todos, e estando certa de que haveria muita gente a encarregar-se da paz no mundo, da igualdade de direitos e oportunidades, de governantes honestos e competentes, e por aí fora, eu pedia filmes antigos na televisão pública.

E quem achar que isto é supérfluo pode parar agora de ler que isto não vai melhorar, aviso já.

Se me perguntassem aos 10 anos qual era o meu filme preferido, eu não hesitaria: “O Gavião dos Mares”, de Michael Curtiz, com a minha primeira grande paixão, o Errol Flynn. “The Sea Hawk”, no original, o melhor filme de capa e espada de todos os tempos, já tinha, quando eu o via nessa época, uns respeitáveis 46 anos, mas continuava vibrante.

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História de piratas, e em particular de um pirata inglês livremente inspirado em Francis Drake, era também uma história de liberdade em tempos difíceis e de homens capazes de sacrificar a vida por essa liberdade. Nos anos 80 passou na RTP dezenas de vezes. Mas quem tiver menos de 20 anos dificilmente terá visto esse filme ou muitos outros dessa época, a não ser que tenha crescido numa casa particularmente cinéfila.

Não me interpretem mal, não é que eu não goste do cinema actual. Pelo contrário, gosto muito. É justamente por isso que não entendo como se pode apagar a história do cinema, votando ao total esquecimento muitas das suas melhores obras.

Na minha infância, boa parte do horário nobre da programação era ocupado por sessões de cinema e aí tanto se aguentavam estopadas de que já não nos lembrávamos no dia seguinte, como se podia descobrir uma pérola que ficaria, a partir desse dia, como mais um dos filmes da nossa vida.

Filmes negros como “Relíquia Macabra” (“The Maltese Falcon”),  do John Huston, baseado no romance de Hammet, comédias deliciosas como “O Mundo É Um Manicómio” (“Arsenic and Old Lace”), de Frank Capra, com Cary Grant e Peter Lorre, ou thrillers aterradores como era para mim nessa altura “Marabunta” (“The Naked Jungle”), com a ameaça das formigas que tudo devoravam (a marabunta) a aproximar-se da plantação de Charlton Heston e de Eleanor Parker.

Relíquia Macabra

Arsenic and Old Lace

Assisti a tudo, às gargalhadas ou com a cabeça escondida debaixo da almofada do sofá, e quando hoje passeio os dedos pelos escaparates das lojas da especialidade, e na melhor das hipóteses consigo encontrar o “Casablanca” ou o “E Tudo o Vento Levou”, sinto-me roubada. Onde estão “O Fantasma e a Senhora Muir”, “O Vale Era Verde”, “O Quarto Mandamento”, “Esplendor na Relva”?

Não vale a pena dizer com que programação foi ocupado o horário nobre do canal um da televisão pública. Mas no canal dois, o dos intelectuais, a coisa não é muito melhor. Entre a “Anatomia de Grey” e a aquela senhora que passa as entrevistas a menear a cabeleira lustrosa, não sobra espaço para o Errol Flynn.

O meu velho devaneio de ver nascer pela cidade salas de cinema que apenas exibam filmes antigos parece cada vez mais afastado da realidade. Temos a internet, é certo, mas somos ainda poucos os que a temos, não é?

Garanto-vos: encontre eu um Rei Mago ou um génio da lâmpada ou um vencedor do Euro Milhões que me conceda um desejo, e amanhã mesmo estaremos no sofá a assistir à sessão da tarde.

Comments

  1. Recordo-me bem do período áureo de “5 Noites, 5 Filmes” (da primeira vez e não da segunda), com grandes fitas. E das tardes de cinema nas férias grandes. Por mais que brilhasse o sol, queria mesmo era ver os filmes que então eram emitidos. Belas recordações. E as saudades de ver o genial “A desaparecida”, de John Ford.

  2. Luis Moreira says:

    Play it again, Sam! Grandes filmes!

  3. Carlos Loures says:

    Às vezes deitam-se fora coisas que têm préstimo. Acontece com as nossas arrumações e acontece com a sociedade. Os velhos cineclubes fazem falta. As sessões semanais do Imagem, do ABC ou do Universitário, aqui em Lisboa, mostravam filmes antigos ou mais recentes, mas sempre acompanhados de uma explicação, integrados em ciclos – era uma forma de aprendermos a ver cinema. Porque só se pode amar verdadeiramente aquilo que se compreende. Os clubes de vídeo e os canais temáticos põem filmes ao nosso dispor, mas não é a mesma coisa.

  4. Carla, eu não vejo televisão, por isso não sei o que ela passa ou não em termos de filmes. Fui, nos meus tempos, um amante de cinema, como fomos quase todos nós. E lembro muitos dos que referes, e tenho saudades, não propriamente dos filmes, mas do estado de espírito que eles criavam dentro de mim, daquilo que eles deixavam dentro de mim e que perdurava por muito tempo. Alegria, tristeza, entusiasmo, determinação, coragem. Uma espécie de lavagem do nosso íntimo, ou melhor dizendo, uma espécie de calibragem da nossa balança interior. Mas, acima de todos, os filmes do neo-romantismo italiano. Ainda hoje me delicio. Bendito Fellini, bendito Etore Scola e tantos outros.

  5. Melhor dizendo, do neo-realismo italiano

  6. Ricardo Santos Pinto says:

    Tenho saudades daquele tempo em que só davam 2 filmes por semana na televisão, um à 4ª Feira e outro ao Domingo. Não perdia um. Agora, com tanta oferta, raramente vejo.

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