Presente e futuro da advocacia: uma questão de República (3)

No seguimento do que escrevi aqui, começo por aquilo que, entre Advogados, causa maior divisão de opiniões: a massificação da profissão. É matéria controversa quanto baste. E se com ela começo, será também com ela que concluirei, em tempo, esta série de artigos.

Isto, porque a massificação da profissão de advogado – no que concerne ao actual estado e a possíveis soluções -, está na base da grande divergência dentro da classe.

Comecemos pelos números:

– Em 1991, a totalidade de cursos de Direito em Portugal “produzia” cerca de 1.500 licenciados por ano, sendo que a partir de 1994 passou para cerca de 2.000 por ano. Destes, em média, cerca de 82% inscreveram-se como Advogados (após conclusão do respectivo estágio).

– Em 2003, havia cerca de 20.000 advogados inscritos na Ordem dos Advogados (doravante OA).

Hoje, existem cerca de 31.000, dos quais cerca de 27.000 exercem, sendo cerca de metade, jovens advogados (com inscrição na OA há menos de 10 anos). Uma racio de um advogado para cada 350 habitantes (na Áustria será um para cada 4.200, na França um para cada 1.800).

– Hoje, com o chamado Processo de Bolonha, as licenciaturas deixaram de ter 5 anos, passando a ter apenas 4.

A frieza dos números demonstra uma verdade incontornável: a OA, e com isso a Advocacia, tem vindo a sofrer uma avalanche cada vez maior de entrada de licenciados, pois que os cursos de Direito não conhecem nem limite nem rácios.

O Governo, designadamente o Ministério do Ensino Superior, nada fez ou faz, e permite que a avalanche de licenciados em Direito continue. Pior: o número de licenciados e de doutores, não importa em que ciências, é apresentado pelo Governo como uma conquista extraordinária, sem ainda ninguém ouvir do mesmo Governo em que mercado de trabalho irão os tantos licenciados e doutores sobreviver.

Existe, pois, um contínuo e crescente processo de massificação da Advocacia.

Já em 2003, o crescendo do número de inscritos na OA começou a chamar à atenção, e a demandar por cuidados, que jamais se tiveram.

Desta forma, face à contínua atitude de omissão por parte do Governo – para não dizer de autismo -, terá de caber à OA, por força do seu poder de auto-regulamentação, tomar as necessárias medidas. Se Governo nada faz e insiste manter aquilo que é uma das maiores desgraças nacionais – a desadequação do mercado de ensino ao mercado de trabalho -, cumpre à OA preservar o estatuto, os valores, a solidez e o respeito por uma profissão que é de reconhecido interesse público, sem a qual não há boa administração da Justiça, não há Estado de Direito Democrático.

Por parte da OA, algo já foi feito: os licenciados em sede de Processo de Bolonha, cuja licenciatura não tem 5 anos, passaram a ter de se sujeitar a um exame nacional de admissão a estágio na OA (Deliberação nº 3333-A/2009, de 16/12/2009). Na verdade, nos termos regulamentares, a admissão a estágio exigia apenas licenciatura. Mas tal preceito foi redigido no tempo em que a licenciatura em Direito era e foi de 5 anos. Houve, pois, que adequar o acesso ao estágio às novas realidades.

Para uns é excessivo, para outros é insuficiente. E disso tratarei no próximo artigo.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Meu caro, isso já foi tentado, por exemplo em Arquitectura. Além de ser inconstitucional, é pior a emenda do que o soneto.Se um curso não tem reputação para os seus alunos entrarem directamente na Ordem o Estado tem que o não reconhecer, não podem é as pessoas tirarem cursos que não os deixam exercer a profissão.É uma questão de respeito para com os alunos.

  2. Caro Luís Moreira:
    A questão da reputação ou qualidade dos cursos não é tudo: não há espaço na advocacia para tanta gente.
    Por outro lado, os que tiram o curso de Direito não têm de ser todos advogados: podem tentar ser magistrados, ou notários ou conservadores. Ou simplesmente juristas. Há muitos juristas em muitas empresas privadas e públicas, que não exercem a advocacia.
    E nem todos, apesar de terem o curso de Direito, podem ser magistrados, notários ou conservadores. Porquê? Não há vagas, não lugar para todos. Mas nada os impede de tentar.
    Quanto ao respeito pelos alunos, o Estado terá então de criar vagas para todos que que se licenciaram com o intuito de serem, por exemplo, professores de História ou de Matemática, e que se encontram no desemprego.
    Começa a ser hora das pessoas terem, tembém, um pouco de sentido de responsabilidade, e não fazerem finca-pé em cursos que não tem saída, escolhendo melhores opções. Hoje, ao contrário de outros tempos, essa informação já existe. Por isso é exigível maior responsabilidade por parte de quem escolhe. Pais incluídos.
    Agora, se alguém sente que a sua vocação é aquela, pois que estude, que se aplique e se for bom, pois que tente ser seleccionado. Não pode é continuar a ser mais de 80% dos que se licenciam em Direito – não é dos que se candidatam é dos que se licenciam – a tornarem-se advogados e a saturar, ano a ano, o mercado.
    O que a advocacia não pode é continuar a ser o sumidouro de todos quantos se licenciam em Direito. Até para sobrevivência da própria advocacia, tal como exponho hoje no artigo de continuação desta série.
    Se o Estado não cumpre o seu papel, alguém vai ter de o forçar a faze-lo.
    Inconstitucionalidade? Venha ela… Mas hevemos de forçar o Estado a assumir a sua obrigação de adequar o ensino ao mercado de trabalho, a bem de todos os cursos – não apenas de Direito -, e dos milhões que são gastos quer pelos pais dos alunos quer pelo erário público.

    • Luís Moreira says:

      Completamente de acordo, não podem é atrair alunos para cursos que não têm saída.

  3. zé manel says:

    Existem tantos lics em Direito porque o curso, na grande maioria das faculdades (princ. nas privadas), é simplificado, para não dizer vendido.
    Estudei na fduc, faculdade onde ainda se exige algum estudo, custou-me a ter média de 14, estudei bastante, dias seguidos, meses…
    Numa faculdade privada qualquer um tem 14, sem pegar num livro. Sei disso porque conheço muitos colegas que ai tiraram os cursos. Se qualquer um tem 14, menos de 10 já se vê que é impossivel, assim aparecem esses lics todos!!!
    Tive cadeiras em que me custou a ter 10 11, cadeiras em que estudei bastante…
    Se não fosse o facilitismo, podiam existir 50 faculdades, que o nr de lics era menor do que o actual.
    Hoje em dia, qualquer um tira um curso de direito.

  4. No meu caso concreto saí duma turma onde em cerca de 100 alunos só 20 ponderavam seguir a Advocacia.

    Todos os demais e uma grande parte deles eram funcionários públicos e a licenciatura iria dar-lhes acesso à progressão na carreira. Posso inclusivamente dizer que tinha uma turma recheada de polícias.

    Que venha um sistema de numerus clausus no acesso à profissão.

    Ressalvo porém que há que ter cuidado na definição do número de Advogados a que se vai permitir o acesso.

    Não creio que a ratio nº de Advogados por habitantes seja a mais adequada.

    Fala-se por exemplo que na Finlândia há 1 Advogado por cada 6000 habitantes, mas esquece-se que de acordo com a Eurostat o número de roubos praticados e participados à Polícia em Portugal em 2007 foram 18483, com tendência para subir e na Finlândia 1784, com tendência para baixar.

    Há que definir bem estes critérios e comparar o comparável.

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