O Terramoto de 1755 e a cultura europeia da época

Em textos anteriores, vimos já que se perdeu muita coisa importante no Terramoto de 1755 – os seis hospitais da cidade, incluindo o de Todos-os-Santos, 33 palácios da grande nobreza, o Palácio Real, a Patriarcal, o Arquivo Real, a Casa da Índia, o Cais da Pedra, a Alfândega palácios, igrejas, bibliotecas, a faustosa Ópera do Tejo, inaugurada sete meses antes… Na «Gazeta de Lisboa» do dia 6 de Novembro, afirmava-se que «O dia primeiro do corrente mês ficará memorável pelos terremotos e incêndios que arruinaram uma grande parte desta cidade». Diga-se, de passagem, que a «Gazeta» nunca interrompeu a sua publicação devido ao sismo, constituindo uma importante fonte de informação sobre o que aconteceu. Vimos já, como dizia, o que se perdeu, relação enriquecida com um excelente comentário do aventador Nuno Castelo-Branco.

O que se ganhou, também sabemos: uma cidade nova, muito moderna para a época em que foi construída e, pormenor importante, edificada de acordo com um sistema anti-sísmico – a famosa estrutura flexível de madeira dos edifícios, «em gaiola». Como disse José Augusto França, a nova Lisboa saída do inspirado traço de Eugénio dos Santos, surge como uma autêntica «cidade das luzes», uma obra emblemática do espírito do iluminismo.

Dada a necessidade de uma reconstrução rápida, optou-se por uma tipologia despojada de ornatos, um estilo que resulta de uma mistura de elementos que, segundo o Professor Nelson Correia Borges, se inspira « num passado arquitectónico, recente ou longínquo, de Lisboa, numa combinação de maneirismo revivido com alguns pormenores empobrecidos do barroco e do rococó». Em todo o caso, apesar desse despojamento formal que caracteriza o «pombalino», a reconstrução deu – nos uma praça de beleza ímpar, à maneira das «praças reais» europeias – o Terreiro do Paço (uma das derrotas do Marquês, que quis crismar o largo como Praça do Comércio, nome que ainda hoje figura nas placas toponímicas).

Mas não só na arquitectura houve ganhos – o grande sismo e a destruição de Lisboa, tiveram repercussões na cultura da segunda metade do século XVIII. Numa época em que os filósofos punham em causa princípios considerados até então intocáveis, uma tal catástrofe, destruindo em minutos uma das maiores cidades da Europa, que tantas centenas de anos levara a edificar, dava que pensar. Era a insustentável fragilidade da condição humana face à incomensurável grandeza… de quê? De Deus? Da Natureza?

Diversos vultos da cultura europeia lhe dedicaram escritos. A catástrofe foi motivo para equacionar questões importantes que mexiam com a religião, com os conceitos filosóficos, com o papel atribuído ao homem no palco do mundo. As grandes interrogações que se punham, pelo menos na Europa das Luzes, poucas décadas antes da Grande Revolução de 1789, eram a prevalência (ou não) da vontade divina e a margem de manobra que o homem tinha para decidir o seu devir. Em síntese – Deus e o homem – quem decidia o quê.

Tudo isto (principalmente aqui, com a Inquisição de ouvidos espalhados por toda a parte) tinha de ser dito com cuidados funambulescos, avançando-se sobre um estreito arame de conceitos, não fosse no meio das deambulações filosóficas escapar-se alguma heresia e cair-se em cima da fogueira. Como iremos ver, às vezes acontecia.

Sobre o que se escreveu, Europa fora, acerca do terramoto, os exemplos mais citados são «O Poema sobre o desastre de Lisboa», escrito em 1756 por Voltaire (1694-1778) e a consequente «Carta a Voltaire» de Jean-Jacques Rousseau (1712- 1778), os «Escritos sobre o Terramoto de Lisboa», de Immanuel Kant (1746-1781) e palavras de Goethe (1749-1832) que, dissertando sobre a catástrofe, disse “porventura em algum tempo o demónio do terror espalhou por toda a terra, com tamanha força e rapidez, o arrepio do medo”.

No seu poema, Voltaire contraria o pressuposto de que o mundo criado por Deus, está de tal maneira bem organizado que, quando ocorre um «mal necessário», a Divina Providência logo compensa os homens com um «bem» que supera esse mal. Utiliza o terramoto que destruiu Lisboa como um argumento que desmente aquele conceito optimista e conducente ao fatalismo que não deixa margem de manobra à intervenção humana. Digamos que a reflexão voltaireana introduz o determinismo como elemento a tomar em consideração.

Tornou-se óbvio desde logo que, na mira de Voltaire, estavam os postulados metafísicos de Leibniz (1646-1716) segundo os quais o nosso mundo é o melhor, pois foi o escolhido e criado por Deus. Na «Teodiceia», Leibniz atacava frontalmente todas as tentativas filosóficas para contrariar a religião. Voltaire, no poema, perguntava ironicamente como é que a bondade de Deus permitiu uma tal tragédia. Em Candide, ou l’optimisme (1759) o terramoto de Lisboa é também referido como negação desse optimismo defendido por Leibniz.

Por seu turno, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) 1756, na sua “Lettre sur la Providence” (1756), contraria a posição de Voltaire, sem contudo apoiar a teodiceia leibniziana. Segundo Rousseau, a culpa do que ocorreu em Lisboa, não seria de Deus, nem o drama terá decorrido de causa natural. Os motivos da tragédia teriam de ser procurados na corrupção da «integridade» dos homens, provocada pela degenerescência social, pela usura, por aquilo que Marx no século seguinte definiria como a vertigem da acumulação do capital. Como exemplo, Rousseau, referia o facto de em Lisboa haver cerca de vinte mil casas com seis e mesmo sete andares, o que era contrário à Razão. A cupidez, a ânsia de lucro, a corrupção da natureza humana que Deus atribuiu aos homens, eis a causa da tragédia.

Kant, por sua vez, diz nos seus «Ensaios»: «A história não regista outro exemplo de uma agitação das águas tão grande e tão extensa numa tão larga superfície da Terra». E, mais adiante, referindo-se à generalidade das pessoas: «Como o terror lhes rouba a reflexão, julgam que estas grandes desgraças são das tais que não se podem minorar por qualquer precaução e supõem que a dureza do destino só pode ser abrandada por uma submissão cega e entregam-se completamente à misericórdia ou à cólera divina».

Houve também os que não especularam e se limitaram a descrever. Um bom exemplo desse formato é o de J.R.A. Piderit (1710-1791), que diz em «Freye Betrachtung über das neuliche Erdbeben zu Lisabon» (Marburgo, 1756, citado por Isabel Barreira de Campos em «O Grande Terramoto -1755», Lisboa, Parceria, 1998): «As nossas casa tremiam como folhas das árvores, e os nossos corações como as nossas casas. Imaginai, ó vindouros, o pavor com que o ranger e o ribombar da queda dos edifícios, que ruíam em massa, nos abrasava, como um fogo, até à medula dos ossos. Aqui uma caterva de gente contorcia-se sob os escombros, nas mais cruenta agonia. Além gritos lancinantes de morte coavam através das pedras e da terra, e a ninguém era possível acudir aos desventurados que se debatiam sozinhos. Mas além um desgraçado rasgava as unhas e a carne até aos ossos, a fim de salvar a sua pobre vida de uma cova – tal, porém, para nada mais lhe valendo senão para se tornar em coveiro de si mesmo, porquanto, com suas mãos, preparava o próprio túmulo».

Em Portugal, com a Inquisição a ser usada pelo marquês como polícia política, fiava mais fino. Em todo o caso, publicaram-se numerosas obras sobre a catástrofe. A maioria delas, descritivas, sem grandes incursões no território perigoso das razões filosóficas ou religiosas, tanto mais que o marquês depressa fez saber a sua opinião através de um panfleto que foi profusamente distribuído – o sismo fora motivado por causas naturais, não haviam intervindo forças sobrenaturais. Ponto final.

Um dos mais elucidativos exemplos desta forma prudente de abordagem é a de Paulino António Cabral, Abade de Jazente com «Ao Terramoto do Primeiro de Novembro de 1755. Romance Fúnebre!»:

«Um só momento, um só, porém terrível
Abre, rompe, destrói, faz em pedaços
Os doces lares, as sublimes torres,
Os Templos Santos, e os Palácios altos.
A rude queda das paredes rotas
Devora vidas mil por modos vários;
Pois sendo um só destino, é bem diversa
A morte que resulta dos acasos.»

É uma reflexão filosófica sobre o efeito que «um só momento» pode ter no frágil mundo dos humanos e a imponderabilidade do destino. Muitos outros livros houve, como por exemplo a «Nova e Fiel Relação do Terremoto, que experimentou Lisboa e todo Portugal no 1º de Novembro de 1755», de Miguel Tibério Pedegache, ou, de D.J.F.M., Teatro Lamentável, Cena Funesta: Relação Verdadeira do Terremoto do primeiro de Novembro de 1755», ambos publicados em 1756. A lista completa de títulos é grande e, para o que pretendo dizer, inútil.

Entre as excepções à onda descritiva ou meramente oratória, refiro duas das transgressivas – a do padre Malagrida e a de Cavaleiro de Oliveira. Que não tiveram um final feliz, diga-se. Francisco Xavier Oliveira, o famoso Cavaleiro de Oliveira, com o seu «Discurso Poético sobre as Calamidades presentes sucedidas em Portugal. Seguimento do Discurso Patético, ou Resposta às Objecções e aos Murmúrios que esse escrito sobre si atraiu em Lisboa», dirigindo-se a D. José, afirmava que ignorando a palavra de Deus e perseguindo tantos inocentes, os «culpados habitantes de Lisboa» tinham atraído a ira divina. E desenvolvia o mote, acusando implicitamente de ateísmo, com referências pouco discretas, Voltaire e, mais grave, o marquês de Pombal.

O mesmo e pouco original motivo, foi o introduzido pelo padre jesuíta Gabriel Malagrida (1689-1761), um pregador de origem italiana, que esteve como missionário no Brasil durante mais de trinta anos. O seu opúsculo «Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto que Padeceu a Corte de Lisboa no 1º de Novembro de 1755» considerando que a catástrofe era um castigo divino para os desmandos humanos. Já após o terramoto de 1531, clérigos e frades apontaram a mesma causa.

Cavaleiro de Oliveira e Malagrida cometeram o erro de contrariar frontalmente o conteúdo do tal folheto que o marquês encomendara e no qual se afirmava que o terramoto era um fenómeno natural, nele não intervindo qualquer força sobrenatural.

Ausente de Portugal, Cavaleiro de Oliveira não foi atingido pelo braço da Justiça. Malagrida foi desterrado para Setúbal, mas sendo depois envolvido no processo dos Távoras, entregue à Inquisição acusado de ter produzido afirmações heréticas, foi condenado à morte, estrangulado, o corpo queimado e as cinzas deitadas ao rio. Contrariar o marquês não era nada bom para a saúde. Cavaleiro de Oliveira foi, nesse mesmo auto-de-fé, queimado em efígie.

Procurei, de forma quase telegráfica, abordar muito pela rama as repercussões profundas que o grande terramoto de 1755 e o impacto da destruição da grande cidade de Lisboa, provocaram numa Europa onde a Luz abria temerosamente caminho entre as trevas de ancestrais ignorâncias. Tema que daria para vários volumosos livros.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Serviço Público! Belo texto!

  2. Sem palavras!

  3. Carlos Loures says:

    Muito obrigado, meus amigos. Gostava de ter podido espraiar-me mais, mas os posts demasiado grandes ninguém os lê. Abraços.

  4. Nuno Castelo-Branco says:

    Ninguém os lê, o tanas! Adoraria ter uma máquina do tempo para pelo menos poder filmar a cidade de Lisboa num dia de festa, antes de 1755.

  5. Carlos Loures says:

    Também eu. Mas nem toda a gente sente essa curiosidade.

  6. Nuno Castelo-Branco says:

    Pois eu sinto. Imagine o que seria podermos passear pelas ruas da “baixa” nos tempos dos fumos da Índia e assistir à descarga das naus. Podermos presenciar às grandes cerimónias, à saída à rua de D. Manuel com o seu elefante, cavalo persa e leopardo. às gentes de tantos sítios, desde o norte da Europa, à multidão de negros, indianos e malaios ao serviço em Lisboa. Fotografar tudo o que pudesse.
    Uma patetice de hoje que talvez a ciência do futuro venha a proporcionar a quem nos sucederá.

  7. Carlos Loures says:

    Sem dúvida. Mas falando de coisas possíveis hoje, seria de grande interesse histórico, e com evidente possibilidade de exploração turística, reconstituir a cidade baixa do século XVI. «Lisboa dos Descobrimentos» seria um interessante parque temático.

  8. XicoAmora says:

    “provocaram numa Europa onde a Luz abria temerosamente caminho entre as trevas de ancestrais ignorâncias. Tema que daria para vários volumosos livros. ”
    Magnífico post. Só deixou-me intrigado o final.
    Se queria que a luz penetrasse as trevas, porque expulsou o marquês a elite cultural e científica do país (os jesuítas) e ficou com a inquisição, lançando o país numa escuridão de que nunca mais sairia. E depois há quem lhe chame iluminado. Bolas que nunca mais dão com o interruptor!
    Carlos Loures,
    Lisboa é uma cidade lindíssima e viva. Não precisa de parques temáticos. Precisa é de serviços, comércio e gente a viver na baixa. Com esse tipo de ideia estão a destruir Praga (acho que já ninguém vive no centro de Praga. É só hotéis) e Veneza nunca mais afunda.

  9. Nuno Castelo-Branco says:

    Carlos:

    Existe um espaço enorme e vago, na zona do famigerado prédio do Totobola (IADE) e alguns terrenos baldios adjacentes. Não seria totalmente tolo reconstruir pelo menos uma parte do terreiro, com o torreão de Tércio. Espero que não façam mais bancos e imundícies como a estação de Cacilhas, etc. Essa mania de apontar o dedo ao “pastiche” é ridícula e posso bem com ela. Por esse tipo de ideia, a Baixa pombalina não devia ser devolvida ao que foi antes das “modernizações” dos anos 50,60, 70, etc.

    Ao XicoAmora:
    Quanto ao sr. Pombal, penso exactamente o mesmo. Não deixa de ser grotesca a promoção que os do Centenário lhe fazem, quando foi o maior liberticida da nossa história. As malfeitorias que exerceu no ensino, ainda hoje nos saem caras e tudo isso, por despeito pessoal, fome de poder e desejo incontido em enriquecer a toda a brida. Aliás, fez o pleno.

  10. Carlos Loures says:

    O «despotismo iluminado» (esclarecido ou ilustrado) caracterizava-se em muitos países da Europa, na segunda metade do século XVIII, pelo absolutismo e a exaltação do poder do soberano, a par com os ideais de progresso, reforma e da filantropia. O Iluminismo tem de ser explicado e compreendido dentro de um contexto histórico que não é comparável ao que vivemos. O marquês de Pombal era um déspota. Querem uma lista de outrso déspotas seus contemporâneos? Era também um notável estadista e o que fez em Lisboa foi fantástico.

  11. Carlos Loures says:

    E no Porto. A criação em 1756 da Companhia para a Agricultura das Vinhas do Alto Douro, concedendo-lhe isenção de impostos no comércio e nas exportações e criando a primeira região demarcada de produção vinícola, com a cidade do Porto com plataforma logística, provocou um crescimento urbano com tal rapidez como nunca acontecera em Portugal. E fez reformas que eram necessárias, mas que ninguém, senão ele, teve coragem de fazer. Os Jesuítas era, como diz o Xico Amora uma notável elite cultural, mas funcionavam como um contrapoder. Em nenhum estado europeu a sua acção hegemónica foi tolerada.

  12. XicoAmora says:

    Em nenhum estado europeu a sua acção foi tolerada, porque se opunham à ditadura do absolutismo (a língua afiada de Vieira mostra-o bem). Os jesuítas expulsos de Coimbra e de Lisboa, foram grandes homens de ciência nas universidades estrangeiras que os receberam. Nós ficámos sem ensino secundário e na universidade proibiu-se o pensamento e a música simplesmente foi abolida. Fez obra notável em Lisboa. Concordo, mas eu nunca disse que Pombal era parvo. Quanto à economia, parece que a Inglaterra agradeceu…mas disso eu nada sei.

  13. Carlos Loures says:

    A criação da primeira zona demarcada de produção vinícola, terá proporcionado bons proventos aos ingleses. No entanto, permitiram o desenvolvimento, senão da região, pelo menos da cidade do Porto que, sem a medida tomada pelo marquês, não seria o que é hoje. E há outra coisa, Xico Amora, o marquês não era, de facto, um exemplo de bondade. Foi um déspota. Mas, diga-me, não acha que a Viradeira foi um regresso ao passado, um retrocesso?

  14. cade a causa do terremoto?

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