No Centenário da Invasão Francesa


À semelhança de outras grandes cidades europeias, Lisboa vai adquirindo hábitos e características próprias das sociedades desenvolvidas, mau grado o nacional pessimismo que corrói tradicional e horizontalmente a nossa gente. De facto, todos os dias podemos encontrar uma pequena feira do livro numa estação do metropolitano da capital, embora os preços não correspondam exactamente ao que se possa considerar como uma pechincha. Servem antes do mais, para as editoras escoarem produtos armazenados e nem sempre de garantida qualidade.

Comprei há uns dias um livro da autoria de um certo Antoine Béthouart, homónimo (ou o próprio?) do conhecido militar francês que se destacou na fase final da II Guerra Mundial e na zona de ocupação gaulesa na Áustria. A obra “Metternich e a Europa” (Lello & Irmão, colecção Figuras do passado), é ligeira e passível de uma breve leitura de duas noites em fim de semana.

Metternich é sem dúvida uma incontornável figura de grande homem-chave da Europa abalada pelo vendaval revolucionário e napoleónico. Servindo como chanceler do império austríaco, desde sempre encarou a sua missão como a garantia da salvaguarda do sempre instável equilíbrio das potências
continentais, procurando igualmente a normalização daquela nova França que agora e de forma aparentemente definitiva, exercia a hegemonia finalmente conseguida pelo génio militar do grande corso.

A liquidação do Sacro Império Romano Germânico nos campos de Austerlitz, consistiria no primeiro passo para o progressivo afastamento da Áustria do conjunto daquilo a que se chamava Alemanha, até então uma mera expressão geográfica sem real correspondência numa entidade económica, política e militar como a partir de 1871 passámos a considerar. Zelador do imenso império do qual os Habsburgo eram há séculos titulares da coroa, Metternich compreendeu o perigo representado pelo nacionalismo, num âmbito geográfico de uma Mitteleuropa onde apenas duas potências – uma militar e outra territorial – podiam almejar a uma futura unificação de todos os alemães: a grande Prússia consolidada pela perseverança e arte militar de Frederico o Grande e a própria Áustria lato sensu, termo este que abrangia regiões tão diversas como a Hungria, a Boémia e a Morávia, a Eslováquia a Galícia polaca, uma parte da Ucrânia, as conquistas conseguidas em detrimento do turco na Eslovénia, Croácia e boa parte da actual Roménia. A fidelidade dinástica e a ascensão de Viena a grande cidade sede de um outro Império que de facto se sobrepunha ao já quase milenar e quimérico I Reich, consistia por si, na demonstração da viabilidade de um esquema organizacional e político alternativo a outros Estados – ainda em escasso número e de que o nosso país era um exemplo – que reivindicavam a condição aglutinadora do princípio “um povo, um território, uma lei e um rei”.

O livro tem o interesse despertado pela narração de estórias da história, desde o ponto de vista meramente factual e sem uma reflectida interpretação desapaixonada da razão de ser da política externa austríaca gizada por Metternich. O autor dá-nos a conhecer a activa vida mundana e sentimental do grande chanceler, por cuja cama passaram notáveis e respeitáveis senhoras dos grandes salões da velha nobreza e daquela outra, a revolucionariamente adventícia, por sinal bem ciosa dos novéis e sangrentamente conquistados pergaminhos. Da já lendária duquesa de Sagan à propria irmã de Bonaparte, efémera rainha de Nápoles, muitas foram aquelas com quem o chanceler teve ligações mais ou menos duradouras e por vezes em simultâneo desvanecimento de sentidos. Pelo que parece, o grande homem era um incorrigível sedutor e polígamo assumido. Com efeito e à luz da época, nada disto era extraordinário, pois a arte da cortesia e dos amores interditos consistia numa parte indissolúvel dos usos e costumes de um Ancien Régime, afinal consideravelmente menos puritano que aquele que se lhe seguiu e que ditou a norma burguesa. Muitas foram as “Messalinas do seu tempo”, desde a falsa e perversamente acusada Maria Antonieta, até à genial autocrata Catarina II da Rússia, sem esquecermos uma Isabel de França – duquesa de Parma e filha de Luís XV -, a sua filha Maria Luísa – rainha de Espanha -, a escandalosa mas muito popular Carolina de Brunswick, as irmãs Bonaparte e ainda, a própria arrivista imperatriz Josefina. Todas elas tiveram as suas ligações perigosas, embora em regra os costumes tendiam senão ao perdão, pelo menos a um certo esbatimento da real importância política das vidas privadas destas notáveis. No caso português, surge sempre como argumento de recurso, a rica, fascinante e multifacetada personalidade de D. Carlota Joaquina, de quem tanto se disse e ainda se diz, embora uma rotineira consulta à sua correspondência, biblioteca e colecção de pintura – de que era grande apreciadora – nos ofereça uma convenientemente desconhecida perspectiva da sua vida e interesses.

Regressando ao livro de Béthouart, trata-se apenas da clássica visão francesa da época, onde os interesses imperiais parecem exaustivamente sobrevalorizados, em detrimento das múltiplas verdades da história. Toda a obra contém o conhecido figurino há muito adoptado pela política externa de Paris, quando Luís XIV criou o conceito de “fronteiras naturais da França” que grosso modo deveriam corresponder aos Pirenéus, Alpes e Reno. A Alemanha, o hereditário inimigo criado pela mesma França que dela se serviu como campo de batalha e de saqueados despojos durante três séculos, começou de facto o caminho para a sua existência como entidade nacional, muito antes de 1789 e exactamente no alvorecer do Século das Luzes, mercê do decisivo contributo oferecido pelo nascimento do reino dos Hohenzollern e dos grandes homens que como Kant e Frederico II, anunciaram o Geist, ou Volkgeist que afinal viria a ser furiosamente atiçado, culminando em consagração, pela invasão francesa. O autor habilidosamente oculta a infinita série de malfeitorias impostas pelo império napoleónico a uma Europa que sofreu duas décadas de vandalização de património, roubo, morticínios, conscrição forçada, esbulho de soberanias, chantagem política e militar contrárias ás boas regras da diplomacia aceite e principalmente, o estabelecimento de um regime económico de brutal extorsão através de pautas aduaneiras ruinosas.

A sua opinião acerca de Metternich é muitas vezes ambivalente e frequentemente contraditória, sem jamais ter verdadeiramente compreendido a repugnância que o chanceler votava a esse “nacionalismo” parido por uma Revolução dissolutora e indesejada, esse colossal perigo para a integridade da tradicional política AEIOU dos Habsburgo. O elo que ligava os povos à dinastia, era decerto muito mais sólido que aqueles que hipoteticamente prenderiam um prussiano, hamburguês, vestefálio, badense ou austríaco. Cem anos após a definitiva derrota da França em Waterloo, veremos o exército das nações dos Habsburgos novamente marchar contra os inimigos do Império de Francisco José I, fossem eles os russos, romenos, sérvios ou os italianos, numa derradeira demonstração do patriotismo dinástico.

Se a semente da consciência nacional alemã já havia sido deitada á terra da velha Germânia pelos pensadores e por aquele outro que entre eles foi o maior militar do seu tempo – Frederico II -, acabou por definitivamente germinar durante a necessária fase de coligações, onde a expulsão do invasor se tornou a tarefa primeira de regiões até então desavindas. Béthouart vê assim a política de Viena como meramente errática e ao sabor dos azares ou quiméricas vitórias nos campos de batalha, sem jamais ter compreendido a sua verdadeira razão de ser. É que Metternich era um homem amante da relativa moderação da política externa dos diversos Anciens Régimes europeus, onde a própria Alemanha deveria continuar a ser aquela expressão geográfica de sempre, com fronteiras internas ditadas pelos senhores do momento e na qual podiam até coexistir gentes de diversas crenças e línguas. Estilhaçada a legitimidade da potência bourbónica em 1789, a ligação de Napoleão à arquiduquesa Maria Luísa, foi pelo chanceler encarada como uma preciosa oportunidade de inclusão da França no normal funcionamento de relações de força na Europa, embora com fronteiras desmesuradas e desajustadas, mas decerto discutíveis após o desaparecimento de Napoleão I. O sonho da obtenção da Renânia alemã, já antigo dos tempos do Rei Sol, é paradoxalmente, o segredo de polichinelo e menos bem guardado do Quai d’Orsay, tendo sido tentado pela derradeira vez, quando na turbulência do pós- I Guerra Mundial, Clemenceau pretendeu a criação de uma república renana separada e evidentemente na órbita de Paris. Inconscientemente, o autor considera a legitimidade do “nacionalismo”, como avaro pertence francês, pelo que nos escusamos a tecer comentários acerca dos acontecimentos ocorridos em territórios tão distantes como Portugal, Espanha ou Rússia, onde o fervor patriótico foi atiçado pelo desejo de expulsão do ocupante brutal e iconoclasta. A análise anacrónica é iniludivelmente, o maior e frequentemente assumido pecado cometido pelo aspirante a historiador e este livro é disto mesmo, eloquente demonstração. Ao contrário de Antoine Béthouart e arriscando-me a castigar-me no mesmo inferno, arriscaria afirmar que Metternich teria saudado o nascimento de uma certa Europa que cerca de um século e meio mais tarde, se consagraria pelo Tratado de Roma.

“Metternich e a Europa”, de Antoine Béthouart, é uma diluviana e indirecta explanação contemporizadora com uma certa ideia do papel da França no continente, onde os Se nunca assumidos, surgem como justificação para uma época de todas as rupturas. Na verdade, o parisiense colega do grande chanceler, o ex-arcebispo de Autun e príncipe de Benevento, o senhor Talleyrand, estava consciente do desarrazoado imperial bonapartista, ditando o seu epitáfio: “o que é excessivo, torna-se insignificante”. Lugar comum à parte, é claro.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Belo texto! Serviço Público!

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