
a escrita é o resultado da investigação em trabalho de campo
Acabo de escrever um livro. Para mim, um livro muito especial. Parece uma frase redundante. Ao acabar um livro, são todos especiais. Especialmente se gostamos da escrita, esse pôr as nossas experiências de investigação no papel, esse passar das nossas ideias à letra gravada em diários de campo, ou na nossa memória, rascunhos em pequenos livros que enchemos, enquanto ouvimos o que nos é contado, sem retirar o nosso olhar da cara da pessoa que nos narra a sua história de vida, ou a cronologia do sítio em que vive. E, se confia em nós, fala da família, dos amigos e dos vizinhos, tal como do trabalho e dos prazeres que tem na vida. Por vezes, quando a relação entre observador e observado se estreita, isto é a relação de confiança fortalece-se, então, este último, aborda as suas tristezas.
Nós ouvimos, anotamos e calamos, excepto se a pessoa (informante) é tímida e fala pouco. Nestas circunstâncias torna-se, pois, necessário intervir um pouco, narrando as nossas vidas e experiências, para acordar a sua curiosidade e inverter os papéis que jogamos, passando de curioso a narrador. Narrativa que estimula a pessoa
e começa uma corrida para saber quem conta mais, quem tem tido experiências de vida mais aventureiras e simpáticas.
Não é raro, em trabalho de campo, que o(a) informante, sem saber como, começa a choramingar e a narrar histórias tristes que comovem a sua emotividade, como explico no texto Trabalho de Campo e Observação Participante em Antropologia, incluído no livro colectivo, de 1984: Metodologia das Ciências Sociais, Afrontamento, Porto, organizado por Augusto Santos Silva e José Madureira Pinto
Porquê Observação Participante e não apenas Trabalho de Campo, como digo no título do meu texto? É simples: para entender o pensamento do outro, é necessário agir como o outro, fazer o que o outro faz, sentir a dor de corpo quando trabalhamos como o outro trabalha.
Aparece um problema nesta metodologia: a primeira vez que nos afastamos dos nossos lares para viver em lares de outros, primeiro, sentimos timidez, não conhecemos as regras da casa nem a interacção das pessoas que nela vivem. Especialmente, se pertencem a formas culturais diferentes: não os entendemos, não nos entendem e uma nova forma de organizar a vida aparece na nossa e na deles. A pouco e pouco, se a participação nas suas vidas é feita como é devido, imitar para aprender a sua conduta e pensamento, começamos a ter amigos, a ter uma certa intimidade, que faz nascer um carinho pessoal, e ganhamos um amigo, esse amigo de quem, mais tarde, nos é doloroso separar.
Ao longo da minha vida, realizei mais de três trabalhos de campo pessoais, dentro e fora do nosso velho continente. Bem como tenho orientado e participado em mais de outros cinquenta de pessoas a quem ensino como se trabalha com outros, sem se intrometerem nas suas vidas pessoais, para, no fim, escreverem um texto e assim obter em os graus académicos.
Confesso que o prolongamento de uma observação participante em trabalho de campo, faz-nos sentir um sentimento emotivo de profunda amizade pelas pessoas com as que convivemos e é difícil tornar a casa. Especialmente, se esse trabalho de campo se faz com a família. Eis porque no livro mencionado antes, após recomendar um certo afastamento, uma certa distância nas emoções, acrescento na parte V do texto, que essa observação participante seja uma experiência de vida: ser como os outros, construir, por meio da participação, o objecto que analisamos, até que um dia, passados anos de convívio, as pessoas que antes relativizávamos para as entender, passam a ser parte da nossa família.
Como o meu mais recente trabalho de campo, realizado em Julho deste ano, uma continuidade do começado nos anos setenta do Século passado e continuado ao longo de 40 anos no mesmo sítio, Paróquia de Vilatuxe, Galiza, para onde parti, com a minha companheira, porque tinha falecido uma das pessoas mais amadas por mim, a quem denominava a Mamá (Nai, en luso galaico) Esperanza, sendo a sua família, também a minha. Entrei na casa deles e não saí nem meia hora ao longo de todo o tempo que lá estive. Confesso que não precisava, as pessoas já sabiam quem era eu e confiavam. Muitas vieram falar comigo e eu ouvi, ouvi e ouvi. E chorei com elas, até adoecer.
Descurei a minha família pessoal, mas o trabalho de campo passa a ser uns vícios que, quando o amamos, não podemos largar: esquecemos tudo e entramos nessa outra cultura da qual nunca tínhamos, de facto, saído.
Estivemos em Vilatuxe vários dias, nessa continuação do meu trabalho de campo, dias curtos para mim, mas acabou num livro para uma Editora de Espanha. Está escrito en Castelhano e é a minha tristeza tê-lo acabado.
Hoje em dia, passados mais de quarenta anos em Vilatuxe e mais de cinquenta anos de trabalhos de campo com observação participante, só ou em equipa, diria outra coisa: não se intrometam no começo, mas depois oiçam, falem, amem, sejam amigos, morem nas suas casas, não os relativizem: somos parte de uma mesma família….
Escrevo este texto, no dia seguinte ao de ter acabado o livro sobre a Nai Esperanza, ajudado por Maria da Graça. Outras ideias, colocava eu no meu de 1984, mas o que está escrito, permanece, como este livro da Nai Esperanza…, uma história de vida.
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