continuação daqui
«Conforme prometera antes de ser eleito, o general Ramalho Eanes convidaria o secretário-geral do Partido Socialista para formar o I Governo Constitucional após o 25 de Abril. Tomaria posse no dia 23 de Julho de 1976 e duraria pouco mais de um ano, caindo precisamente no dia em que Mário Soares celebrava os seus 53 anos de idade. No dia em que chegara ao governo, Soares «não percebia nada de economia, podia ser um ás na política mas na economia era um zero» e dada «a forma displicente com que [tratava] dos números que traduzem a realidade económica, trocando os milhões e os milhares», muitos se perguntavam se «deveria ter sido [ele] o primeiro-ministro do I Governo Constitucional, apesar de o Partido Socialista ter ganho as eleições?»
Muito provavelmente, se Portugal vivesse num regime democrático normal, a resposta seria não mas, em 1976, considerando que o secretário-geral do PS rejeitara a proposta de Sá Carneiro, só existiam dois homens com autoridade política para chefiar o governo de Portugal. Mário Soares e Salgado Zenha. Mas tendo em conta a génese e o modus vivendi do próprio Partido Socialista, no governo ou na oposição, compreende-se que Soares não tenha declinado o convite de Ramalho Eanes, nem tenha colocado à direcção do PS as dúvidas que, só anos depois, ele próprio abordaria. O PS tinha sido o partido mais votado nas primeiras eleições legislativas e assumia-se, com legitimidade, como o partido que mais tinha contribuído para derrotar os comunistas no dia 25 de Novembro de 1975. Por outro lado, para além de Soares e Zenha, nenhuma outra personalidade socialista tinha então emergido com autoridade e carisma suficientes para ser designada para a chefia do governo.
Impotente e sem prestígio, a direcção do PS, ainda com os homens que tinham saído do atribulado I Congresso, aceitaria resignada o papel de espectador do one man show do seu secretário-geral, não ousando contestar sequer as escolhas que faria para integrar o I Governo. Só Zenha o faria na medida do possível, mas a sua reconhecida autoridade moral e o facto de ser uma séria alternativa à liderança iriam, precisamente, custar-lhe o lugar nesse mesmo governo. E embora continuando a ser o número dois «oficial» acabaria também por se resignar ao que considerava serem os «caprichos do Mário» e, numa demonstração de amizade e de fidelidade, recusar-se-ia a fazer uso dos seus poderes potenciais. Mas não conseguiria, nunca mais, dissimular o ressentimento que sentia por ter sido compulsivamente «empurrado» para presidente do Grupo Parlamentar e não escondia, em reuniões do Secretariado Nacional em que eu participaria, a sua clara discordância em relação às pessoas de quem Soares se fazia rodear. Sobretudo quando o embevecimento com que Soares tratava algumas dessas pessoas demonstrava a sua própria ignorância em relação às áreas que ele não dominava. Particularmente acintosos eram os frequentes elogios a Vítor Constâncio que, vindos de um homem que admitia que «na economia era um zero», feririam o orgulho de Salgado Zenha que tinha sido ele próprio ministro das Finanças. No seu antiquado conceito de que o PS não era um trampolim, achava que não bastava ser-se recém-licenciado e declarar simpatia pelo PS para se ser promovido. Para se chegar a um lugar no governo seria necessário fazer tarimba primeiro e mostrar obra, segundo os métodos de promoção política que então eram apontados a Helmut Schmidt, de quem Zenha era amigo e admirador. Só que, embora impedindo a nomeação de Constâncio para o I Governo, a chamada tarimba seria curta e Constâncio acabaria por ser designado um ano e pouco depois, no II Governo, para substituir Medina Carreira na pasta das Finanças.
Com algumas excepções, as suas escolhas para formar o I Governo seriam verdadeiramente desastrosas e aquele governo, no seu conjunto, nunca chegaria a ter uma esperança de popularidade. Sempre obcecado com o poder, «aquilo que ele, efectivamente,
nunca descentralizará», começa então a por à prova a sua própria receita. Assegura o controlo pessoal das finanças do partido através do seu cunhado, que tem ordens absolutas de não permitir o acesso a pessoas estranhas ao serviço. O que equivale
a dizer que ninguém na direcção do partido tinha acesso àquele pelouro, dirigido, simbolicamente, no Secretariado Nacional, pelo fundador e fiel amigo Joaquim Catanho de Menezes. E, de um modo geral, divide para reinar, promove poderes paralelos
entre dirigentes partidários e ministros. Desconfiado como é, entrincheira-se num bunker de intrigas e de contra-informação na sua residência, que transforma num santuário de bajulação dos seus «fiéis». Despromove e demite todos os que se atrevam a dai”
muito nas vistas ou que acabem por ser imolados naquelas intermináveis sessões de esconjuração, fazendo depois circular razões de incompetência, ambição desmedida ou, até, megalomania para justificar os seus actos! Zenha seria uma das primeiras vítimas
desta política. Os avisos «de amigo» da corte de bajuladores de que ele aspirava à chefia do partido e do governo, que Maria Barroso atribuiria à ambição desmedida da Maria Irene, conduziriam à circulação de boatos de que Zenha quereria ele próprio a
pasta das Finanças, razão pela qual se teria oposto a Vítor Constâncio.
E embora ele próprio reconhecesse ser um «zero» na matéria, faria constar que o Francisco Zenha de finanças nada percebia, embora tivesse sido, pesem as condições existentes em 1975, um excelente ministro das Finanças no VI Governo Provisório.
Outros históricos, que o acompanharam nas horas de amargura, se lhe seguiriam. A Manuel Tito de Morais foi dada a pasta de secretário de Estado da População e Emprego. Não porque Tito representasse qualquer ameaça à liderança, mas porque a
segunda mulher do Tito de Morais, a Maria Emília, não era bem aceite na «corte» e ambas as famílias, a Barroso-Soares e a Tito de Morais, se gladiavam pela ocupação de lugares no aparelho do partido. Sobre Tito de Morais confidenciar-me-ia uma vez,
quando lhe perguntei a razão de nunca o ter promovido além de secretário de Estado, que «o Tito nunca tinha lido um livro na vida»! Mas é sintomático que uma das características que melhor lhe assentariam e pela qual, aliás, ficaria sobejamente conhecido
fosse a sua grande incapacidade para escolher colaboradores. Deslumbrava-se frequentemente, por insuficiência própria, com qualidades de pessoas que na realidade não conhecia ou que pareciam dominar áreas que ele próprio desconhecia. Comprovando
aquela deficiência, ao fim de um ano de Governo já tinham sido substituídos vários ministros e o próprio presidente da Assembleia da República e fundador do PS, Vasco da Gama Fernandes, também seria substituído por um outro histórico, Teófilo Carvalho dos Santos. Quando a Secretaria de Estado da Comunicação Social, para comemorar um ano de governo, publicou por ordem do primeiro-ministro um inacreditável livro intitulado Vencer a Crise, Preparar o Futuro, já todo o país exigia uma mudança de Governo, tal era a impopularidade em que caíra. É um livro revelador das tendências absolutistas de que Zenha falava e tinha mais semelhanças com as publicações dos regimes despóticos que primam pelos elogios ao chefe, do que com as de governos democráticos ocidentais, lembrando as inúmeras fotos do primeiro-ministro a sua avassaladora e imodesta omnipresença. Dos cinquenta mil exemplares distribuídos, pagos pelo erário público, transparecia um governo fútil e esbanjador. Anunciava, em tons propagandísticos, a obra feita e as tarefas desempenhadas por alguns membros do governo, ao longo de um ano, como as do secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro para os assuntos políticos, Manuel Alegre, que em menos de uma página declarava ter tido como actividades «numerosas representações ou petições de trabalhadores e organismos sócio-profissionais ou simples cidadãos, canalizando os seus
problemas para os departamentos a que dizem respeito».»
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