O pecado através dos tempos

pecado         Se a sociedade é produto dos homens, também as ideias contêm uma explicação histórica, quer no sentido da passagem do tempo e na acumulação da experiência do grupo social, quer no facto de pertencer a um tipo de explicação positiva da sociedade. Enquanto facto, o pecado é sujeito da produção humana e tem-se desenvolvido através do tempo e pertence à experiência das relações sociais das diversas culturas do mundo, hoje ou no passado. E digo como um facto, porque a ideia é um conceito genérico que subordina, envolve, define diversos comportamentos mutáveis através dos tempos, reprovados pelo grupo social e por alguma autoridade que sancione a opinião do grupo, autoridade que se baseia mais no que, sendo desconhecido para o conjunto da população, é por ela explicado.

         É destes temas que  me  queria socorrer para argumentar  a correlação existente entre o facto histórico de existir com a ideia de pecado, criada pela sociedade e que a reproduz em que uma autoridade recolhe, sistematiza e controla; e a existência histórica de condutas que se baseiam na estrita colaboração de grupos sociais, cujos indivíduos trabalham e coordenam actividades definidas pelas habilidades e conhecimentos de cada um sem mais garantia que o seu compromisso pessoal e  hierarquicamente definido. Por outras palavras,  existe  uma  relação entre as ideias que um grupo social tem acerca do que deve ser feito por ser necessário, e as ideias acerca do que acontece se tal não é respeitado, ou seja, se a proibição é violada. Isto é pecado.

É a teoria que um grupo social elabora para garantir que se sucedam os factos positivos da continuidade,  que mudam, de tempos a tempos, de contexto, e de cultura para cultura. Entre os Kiriwina, da Nova Guiné, quem não é capaz de apresentar ao guardião da ilha dos mortos um inhame de acordo com o tamanho da família que devia alimentar, perde a sua capacidade de reencarnação e passa a peixe, sendo engolido pelos homens e desaparecendo da existência. No Peru, o machihuenhua que não saiba trabalhar transforma-se em macaco, mesmo em vida. O quechua, que desconheça a autoridade do pai e lhe bata, ficará com a mão seca. O alemão que não seja diligente não pode ser amado pelos outros e perde a visão da divindade. O português adúltero deve pedir a absolvição no tribunal da penitência; o morgado que fez um bastardo cumpre o seu dever; quem trai um seu, não terá nem tribunal humano nem divino que o salve. A figura histórica de Judas Iscariote é  disso exemplo.

2 – A História

         Os Babilónios, os Egípcios, os Judeus tinham desenvolvido um conjunto de ideias acerca do que deveria ser evitado para não ofender a divindade construída com os elementos das interdições e virtudes sociais, sendo o centro em redor do qual o grupo mede e afere os comportamentos convenientes. As características da divindade são os elementos que indicam os comportamentos adequados do homem: sabedoria, justiça, caridade. Estes três conceitos trespassam os séculos para organizarem o convívio social. Quer nos escritos antigos, quer no moderno cristianismo, quer, em consequência, no uso costumeiro das ideias que originaram os textos que as produzem socialmente e as sancionam, são elementos orientadores do comportamento e capacidade de entender o funcionamento entre seres humanos e com as coisas, de entregar a cada um o que compete por hierarquia social, de avaliar as qualidades individuais no conjunto do social. Redistribuída pelas formas conjunturais do saber através do tempo, a construção humana da sabedoria divina passa de Deus ao rei e ao povo, para voltar depois à teoria económica liberal, que a gere, hoje em dia. O pecado contra a sabedoria subordina todas as acções que definem um indivíduo como um mau pai de família, que não preveja o sustento do seu lar e não eduque os seus dependentes para a vida.

         A justiça pode ser vista na aceitação de que cada um tenha acesso aos outros e aos bens segundo a sua origem e condição, e aí o pecado é a alteração da ordem divina, da paz e do convívio que permite o trabalho. A caridade é a identidade do homem com a divindade à imagem da qual foi feito, onde a sua factual efemeridade o converte em sujeito necessitado de apoio; o pecado reconhece-se no desrespeito por não entregar a tanta criatura que passa, de forma efémera, pela vida, os meios para ultrapassar a sua essência intranscendente. Como estas ideias são materializadas, é uma questão de datas: o cristianismo perseguido suspende o infractor em relação à participação na comunidade dos fiéis, por mais ou menos tempo; o cristianismo no poder absoluto reparte a expiação das faltas entre esta vida e a eterna; o cristianismo que perdeu terreno porque o imperador o ganhou, consegue trazer todo o castigo para a terra e aliar-se ao poder secular com o fogo da tortura; o cristianismo dividido da Reforma deixa o trabalho à consciência, enquanto que a contra-reforma o deixa aos sínodos e à doutrina e, especialmente, à confissão, que fora leve antes do século XI e que passa depois a  ter a força da sistematização das matérias de pecado.

3 – Os pecados

         De um modo geral, pensa-se que os conceitos que proíbem determinadas condutas na gestão das relações sociais são de natureza sexual e definem a sua repressão. De facto, a história mostra-nos de que forma os corpos se chegam aos corpos por razões bem mais fortes do que as interdições. No entanto, o erotismo e a paixão são temas “governados”, entre outros assuntos, pela doutrina e pelo Direito Canónico. Notem-se três aspectos: em primeiro lugar, que a legislação procura reparar as faltas, isto é, espera que estas sejam cometidas; em segundo lugar, faz uma apurada listagem da sua ordem de grandeza; em terceiro, que as faltas em matéria sexual variam de lugar e importância em diferentes épocas.

         Talvez se possa dizer, com base na evidência histórica, que os chamados pecados da carne, mais do que destinados a orientar os diversos tipos de cópulas possíveis entre os seres humanos, referem-se mais ao destino do produto, caso se trate de relações frutíferas. O próprio Direito Canónico, e a sua laicização na lei positiva, prevêem quais as pessoas, fruto de outros, que se podem ligar aos seus bens e autores, de modo a definirem um posicionamento em relação ao resto dos membros que se consideram ascendentes e descendentes.

         Quase preferia afirmar que a sabedoria, a justiça e a caridade,  atributos da divindade, são distribuídos entre o povo de formas diversas em épocas diversas, e que a visão do pecado sexual é, antes de mais, um tema dos últimos trezentos anos da história ocidental, que agora começa a mudar: nem de outro modo se explica a cuidadosa classificação dos seres humanos e das suas práticas eróticas que o colocam mais perto ou mais longe do convívio social, dos seus parentes. Quase preferia afirmar que a detalhada listagem das interdições sexuais tem menos a ver com as próprias práticas e mais com a necessidade de salientar um tipo de prática em relação às outras. As relações reprodutivas, se comparadas com as que resultam da afectividade como Aristóteles definiu, são incessantemente  pregadas  por S. Paulo, sem detrimento de outras, desde que se procrie. As relações reprodutivas são exclusivamente consideradas práticas legítimas do desejo para os reis, depois para os senhores, e só hoje em dia para o povo, desde que a Igreja, há nove séculos, se fixou no casamento, na altura em que primeiro o poder, e depois os bens eram transferidos ao substituto do titular por via da descendência e estirpe esclarecida.

         Mas, acerca destas matérias, haverá sempre pouca luz, quer porque as práticas sexuais de ontem são vistas com os olhos de hoje, quer porque atingem um campo extremamente sedutor das relações sociais, quer ainda porque talvez não seja de separar a afectividade do prazer e esta seja a definição de luxúria, uma tendência para a unidade do ser, uma unidade que só se pode praticar de forma variada e heterogénea, como fica provado pelo perdão que, afinal, sempre merecia.

4. A lealdade

         É necessário atentar no conjunto das relações sociais para entender que os atributos da divindade sejam o modelo pelo qual se afere o comportamento. A sociedade que se faz a si própria desenvolve a redução do desconhecido ao conhecido, descobrindo as suas próprias leis de funcionamento. As ideias de pecado têm um contexto no Evangelho, que é o da falta de unidade entre o coração e os factos, a revolta contra a sua própria casa, que faz com que tudo esteja errado. Esta maldade é referida a uma entidade externa, caso haja arrependimento: o demónio, excelente bode expiatório, construído com todos os conceitos, que explicam os avanços da virtude e recuos da lealdade à lei e aos outros. A falta de amor, a luxúria que comporta deslealdade e causa a infelicidade, o não tomar partido e assumir os resultados, a falta de valor moral, são os elementos que compõem o pecado.

         Depois, a história de uma sociedade como a judaica, espalhada entre os bárbaros da Europa, cria ao longo da sua civilização os seus intelectuais, que salientam elementos conjunturais. S. Paulo define Deus como centro da acção, com uma lei perante a qual a carne é fraca porque procura o prazer com o outro e não a compreensão do outro, da qual todo o prazer deriva, inclusive o carnal.

         Penso que é entre a luxúria e a caridade, isto é, a lealdade e a compreensão das características do outro no seu contexto, que se debate do temor do mal e da procura do bem. Infelizmente, só temos os testemunhos da escrita, registados por letrados que, inúmeras vezes, retiraram da vida quotidiana  os ditos, milagres e histórias que sobressaem nessa mesma vida quotidiana, para sabermos como se desenvolve este vaivém na cultura do povo. Mas temos pelo menos um, ou dois grandes indicadores: o primeiro é a doutrina; o segundo, o que se pode reconstruir do nosso próprio presente e resgatar da memória do tempo. Desde o século II, a metáfora da salvação envolve a fidelidade do grupo e as suas ideias, a aceitação da divisão dos poderes pelas capacidades de manipular a natureza de cada indivíduo para o que há que ter vontade livre, como insiste Agostinho de Hipona, a fim de entender e agir e ainda fazer o orgulho substituir Deus por si próprio, é esse o mal de então, que ficou definido até agora na memória dos povos cristãos. De modo que, na teoria moderna, que continua a insistir na divisão entre carne e espírito, a carne representa a individualidade que pode libertar, e o espírito representa o ente social, culturalmente formado. O pecado é o facto de agir independentemente, que desfaz a vida do grupo.

5. A garantia

         É verdade que a teoria do pecado é fruto dos cultores da letra, saibam ou não escrever, como aconteceu até ao século XI, produzam ou não conhecimento, como acontece até hoje, especialmente quando o saber e a qualidade do Espírito Santo assiste à cátedra, isto é, ao Papado. Mas também é verdade que o que dizem os letrados não é bem entendido pelo povo, que tem a sua própria teoria das acções. Em primeiro lugar, o que os letrados definem tem por limite a possibilidade de governar o povo dentro de limites que não impeçam o trabalho: quer na compilação canónica do bispo Graciano, a partir do século XI, quer na preocupação teológica e económica de Tomás de Aquino com preços, usura, justiça e riqueza; quer ainda na compilação canónica do papa actual; a regulamentação tem um conjunto de excepções, e que faz da excepção a regra para saber como agir na realidade.

         Cuidadosamente divididos os pecadores, – que tentam, induzem,  e fazem as formas, pensamento, acção, bem como os conteúdos e as fontes – soberba, luxúria, ira, gula, inveja, preguiça, as interdições são transmitidas à população por via da palavra. Apropriada pela Igreja como  forma de governo que tem por destino negro a culpa e o Inferno com um Purgatório que foi criado para sua credibilidade na Idade Média , a teoria do pecado é a que aplica um grupo social, cuja conduta é o resultado da memória oral, em que o que se faz é resultado da memória cuidadosamente repartida entre todos os indivíduos segundo a idade e condição, cuidadosamente desenvolvida ao longo do ciclo da vida. Assim, os Maori decidiram que cada filho não casado seja irmão da sua mãe, e o pensamento judeu cristão criou um código ético que crentes e não crentes vão praticando conservadoramente para que não se esqueçam, numa perspectiva de solidariedade que incentiva o convívio dos pequenos grupos de trabalho onde se processa a vida social urbana ou rural, e que garanta a sanção da acção positiva, em direcção ao bem. O mesmo princípio que a cultura letrada usa na lei, e que Mill (1861) e Freedman (1979) recolheram: quem peca é quem, para a teoria dominante da reprodução social, não sabe manipular os seus corpos e bens de acordo com os padrões definidos, conjunturalmente, do agir. E é o que a Igreja Católica Romana tem acautelado através dos tempos. O pecado garante, assim, a produção da sociedades aos recursos produtivos que prevalecem num tempo histórico e ajustam o pensamento à acção desejada para os obter.

BIBLIOGRAFIA

FREEDMAN, Milton & Rose Marie, (1979) 1980: Liberdade de escolha, Europa-América, Lisboa

MILL, John Stuart, (1861) 1962: Utilitarianism, William Collins & Sons, Glasgow,

Conferência Episcopal, 1917, Código de Direito Canónico.

*Publicado no Jornal Combate, nº. 114, Dezembro, 1988. (Versão portuguesa de Francisco Louçã).

Parede, Novembro de 1988.

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