É tão alto ver o baixo que está abaixo do alto como não ver para cima. Confusos? eu também.
Podia ter começado por outra ponta, que tivesse por onde se lhe pegue. Ponte alguma tem ponta quando temos um dia de pediátrico, gente tolinha a reclamar do nosso ofício e um chefe a assistir-lhe, uma súmula de azares que aqui não cabem e inclui investir sem sucesso em jogos precisamente de azar, uma mãe no telhado a ver se repara por onde chove, um casal no andar de cima desavindo, ele garantindo-lhe umas chantagens de chulo tudo aos berros e misturado com uma das duas semanas em que a minha aldeia vira latrina em latim cada vez menos macarrónico, um carreiro de fortunas assim, uma semana dormindo ainda menos que o costume, no arame portanto, e gosto muito do Outono o que faria se não fosse.
Levo uns dias avariado em estado cada vez mais puro, a primeira fórmula mágica a recitar quando se começa aos zigues e zagues pelas pedras pretas da calçada portuguesa sem reparar nas poças da parte calcária branca: já te passaste por pior, pá, cá estás para provar que sim, calma, alguma coisa há-de suceder, suceder-se, e o sol brilhará outra vez para alguns de nós. Como se a meteorologia não fosse a metáfora mais rasca da vida.
Nestas coisas há sempre um momento de viragem. Em narratologia tem outro nome, o jornalistês fica bem aqui. Pode por exemplo ser quando no bairro contam o sangue da última latrinada:
Fui lá fora pelo barulho da porrada, estava um a bater no outro e os outros a separarem.
Um ficou a sangrar, disse logo que era melhor chamar uma ambulância, mas um outro disse vamos lá dentro lavar isto e já se vê se é preciso; então, depois contaram-me, vinham uns a passarem e disse o que depois bateu aos que estavam à porta do restaurante à espera para entrarem, olha que puta tão bonita, o rapaz virou-se, olha que há outras formas de falar com uma rapariga, e viraram-se os dois, isto foi quando fui pelo barulho na rua, mas já não os vi à porrada.
Depois, quando foi para pôr o lixo, já tinha acalmado, o rapaz estava sentado de cabeça para cima mas já não deitava sangue, fui-lhe perguntar se estava mesmo bem e realmente era só um rasgãozito acima do olho, ele disse que sim, não havia problema, foi só onde bateu um vidro dos óculos.
Ah, Maria do Patrocínio, deste-me a volta. Este é um mundo civilizado, convenhamos, levado com calma podia ter sempre sido ou sempre ter sido pior, e cura-se até com um penso e água lavada, não há necessidade de levar pontos no sobrolho.
Tudo termina por voltar ao local do próximo crime; as peles rasgadas pelo vidro do murro que se levou no focinho acertando nos óculos, todos os telhados são reparáveis através de um novo ou da demolição do edifício; os meus vizinhos do andar de cima reconciliaram-se o que sempre dá menos gritos de dia embora mais gemidos à noite, até os casais desavindos recuperam a harmonia conjugal, conformada a parte vencida.
Antes da próxima vez, é claro, que atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos estão para vir.
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