Não há cor-de-rosa sem espinhos

Rosa_chinensisNos últimos tempos, tenho-me dedicado a passear pela página que a Porto Editora dedica às dúvidas frequentes sobre o chamado acordo ortográfico (AO90). Confesso que tem sido instrutivo e não no melhor sentido da palavra. Dar-vos-ei conta deste meu périplo.

Certo dia, entrei pela pergunta O vocábulo cor-de-rosa tem hífenes?

Ainda antes de abrir, não pude deixar de estranhar que o vocábulo sobre o qual se pergunta se tem hífenes tivesse efectivamente hífenes e cheguei a imaginar que esta ligação conduzisse a um texto bem-humorado em que o leitor fosse levemente invectivado com uma frase como “Então não se viu que a resposta estava na pergunta? É claro que cor-de-rosa tem hífenes.”

Mas não. A resposta é muito mais engraçada. Ei-la:

O vocábulo cor-de-rosa é considerado uma exceção consagrada pelo uso à eliminação geral dos hífenes em locuções de uso geral no texto do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), Base XV, 6.º. Embora este vocábulo seja escrito com hífenes, segundo o vocabulário oficializado em Portugal – o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP), a grafia sem hífen já é aceite como uma outra grafia possível, tal como acontece noutras combinações idênticas iniciadas por “cor de”, como cor de laranja e cor de vinho. Os critérios de aplicação das novas regras estão, portanto, conformes ao vocabulário oficializado.

Deixemos de lado a argumentação absurda sobre as razões para manter ou suprimir hífenes, que não há tempo para tudo. A verdade é que o texto do AO90 é taxativo: escreve-se “cor-de-rosa”.

No entanto, a Porto Editora informa-nos que, de acordo com o Vocabulário Ortográfico Português (VOP),  “a grafia sem hífen já é aceite como outra grafia possível”, o que se confirma através da introdução da expressão “cor de rosa” na caixa de consulta. Conclusão: o VOP, instrumento oficial de apoio ao AO90, não se sente obrigado a respeitar o AO90. Nada que já não soubéssemos.

O dicionário online da Porto Editora, fiel ao VOP, também aceita as duas grafias, embora, numa consulta a “cor de rosa”, se possa ler que, segundo o AO, “a grafia mais usada é cor-de-rosa”, conclusão que deve resultar de um aturado estudo estatístico. Já o Priberam, coitado, só lá vai com hífenes.

Os jovens do Restelo que defendem azougadamente o AO90 desvalorizarão este pormenor, porque o importante é a rosa e não a cor e há gente muito picuinhas. No máximo, admitirão que o erro está nos dicionários, como se isso não derivasse de mais uma das muitas inconsistências do AO90.

Outros jovens irão fazer exames nacionais brevemente. Talvez haja poucas probabilidades de serem obrigados a usar “cor-de-rosa” numa resposta. Seja como for, ao contrário do VOP e da Infopédia, esses jovens são obrigados a respeitar o AO90.

Comments

  1. Em Angola o acordo não entra em vigor, porque foi deliberado que o mesmo carece de revisão por via negocial antes de entrar em vigor…

  2. Ignomínia!
    A ortografia é aquilo que quisermos que seja, derivado à evolução. O erro ortográfico só existe por má-vontade. Antigamente escrevia-se pharmacia. Anote-se bem isso como salvação retórica.
    O hífen, tal como o acento circunflexo, é fascista.

    • Lara Liz says:

      Desculpe, M.: pus um “não gosto” no seu comentário, mas depois disso apercebi-me da ironia com que ele está escrito. Só que às vezes temos tendência a ler à pressa e a levar tudo à letra. Para compensar, vou pôr um “GOSTO”!

      • Não há problema, Lara. Isto dos gostos e não gostos vale o que vale.
        Em todo o caso eu compreendo, qualquer coisa com um “derivado a” é para levar logo de cima para baixo.

  3. pedro barros says:

    uma rosa para o desacordimo? acho pouco. O melhor mesmo é uma coroa de flores… sobre campa rasa e pedra com inscrição “requiescat in pace”, assim, em latim, língua morta a condizer com causa morta.

    • António Fernando Nabais says:

      Reserve a coroa de flores para a sua capacidade de argumentação, pedro. O latim, como se pode ver pelo seu comentário, está vivo e recomenda-se. Entretanto, não sei por que razão perde tempo a comentar causas mortas, mas agradeço.

  4. E não é só em relação a “cor-de-rosa”. O ILTEC, que também inventou a forma pós-AO “interrutor” como exclusiva de Portugal (http://www.portaldalinguaportuguesa.org/index.php?action=lemma&lemma=191897), inclui no seu portal as variantes “água de Colónia”, “arco da velha” ou “pé de meia” que o texto do acordo, no ponto 6.º da Base XV, indica expressamente que têm hífen pela consagração pelo uso. Essas variantes também constam no VOC.
    Ou seja, tanto o ILTEC como o próprio VOC, instrumento essencial para a aplicação do AO, violam o próprio tratado a que se reportam.

  5. João Ribeiro Mateus says:

    Já percebi: de acordo com o ” desacordo abortês” a cor “cor-de-burro-quando-foge” também se escreve com hífenes. A pergunta e respectiva resposta já tiveram a sua pertinência.

  6. Eu nem consigo verbalizar a raiva que esta corrupção e ditadura da língua, cultura me provocam. Bem-vindo de novo. E não se esqueça das minhas questões por favor.

Trackbacks

  1. […] No que respeita ao cor-de-rosa, a Porto Editora defende que se possa escrever com ou sem hífenes, contrariando o texto oficial do AO90 e socorrendo-se do VOP, ou seja, quando o chamado acordo ortográfico obriga a que se mantenha a grafia de 1945, o VOP estipula uma dupla grafia, sendo que uma delas estaria sempre errada à luz de qualquer um dos dois acordos ortográficos mais recentes. […]

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