Postal de Wageningen #2

não quero que te preocupes

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uma vez disseste-me que se tivesses uma memória como a minha suicidavas-te. parei o copo de cerveja, mesmo antes dos lábios. era aveiro. era noite. o verão despedia-se e nós conheciamos-nos pouco a pouco, a um ritmo intermitente que combinava a minha impulsividade com o teu mau feitio. entre outras coisas, incluindo os tais desencontros de horários. éramos ambos, por razões diferentes, uma trapalhada ambulante. tínhamos bagagens muito pesadas que arrastávamos para todo o lado e só raramente largavámos das mãos e dos olhos. disseste aquilo muito seguro do que acabavas de dizer, mas como se não te lembrasses do peso do que acabavas de dizer. eu não disse nada, o copo suspenso antes da boca mas pensei que parvo. dizer-me esta merda a mim e sacudi a cabeça e bebi finalmente.

mas foi evidente que tinhas razão. uma memória enorme, a minha e pesada como o raio, que não me larga as mãos e os olhos. uma memória brutal. no entanto, ainda não me matei e tenho, sinceramente como sempre tive, dúvidas que alguma vez me suicide. dava trabalho e, na verdade, agora que morreste, restam poucas pessoas de quem goste o suficiente para lhes deixar as malas. suponho que me entendas. passaram muitas estações e acabámos por nos conhecer tanto quanto podem as pessoas conhecer-se. já sei, é sempre quase nada.

não sabia que tinha trazido algumas malas, dessas mais estranhas, poucas vezes desarrumadas, porque são pequenas e, isso, estranhas. dessas que nós os da memória gigantesca, arrumamos no canto mais escondido dos armários. há bocado passei na rua onde morei em wageningen. vi o prédio e a janela grande do meu quarto. o beco dos caixotes do lixo. as escadas azuis. e de repente uma mala pequenina caiu-me aos pés. lá dentro estava uma memória também minúscula, tua. quando eu vivia neste prédio, naquele quarto com uma grande janela, onde me sentava a fumar, a ver as copas das àrvores, a escutar as bicicletas, a contar pingos de chuva, recebi um email teu. deve dizer-se que, exceto muito no princípio, quando ainda nos tacteávamos em vez de nos abraçarmos cheios de mau feitio e impulsos vários, raramente me escreveste emails. mas esse recebi-o aqui, nesta rua, naquele segundo andar. dizias elisa que se passa contigo, acabo de ver uma fotografia tua, achei-te muito magra aí na holanda. preocupei-me. ri-me diante do achei-te muito magra, claro. e respondi-te que muito magra era bom, talvez apenas um bocadinho, ando muito a pé aqui na holanda e basicamente como saladas e pão com queijo e iogurtes. não me respondeste. penso que terás ficado tranquilo. acho que depois falámos nisso quando voltei a portugal e me pagaste um jantar de bife e batatas fritas naquele sítio para onde carregavas as malas só comigo. era um sítio idiota, mas os bifes eram bons e, achei-te tão magra lá na holanda, vamos mas é comer um grande bife. sem mau feitio, nem impulsos, só cerveja. a minha preta, como sempre. a tua creio que muitas vezes também.

não me parece que me vá suicidar, hoje ou noutro dia qualquer, por causa desta pequena memória, que sim, dá-te razão. tenho uma memória do caraças e nunca me serve para grande coisa. mas hoje ao jantar comi tudo o que me puseram à frente – e foi imenso, aviso já, incluindo pasteis de nata de receita portuguesa – e empurrei tudo com um par de cervejas pretas. não quero que te preocupes.

Comments

  1. Nascimento says:

    DAS COISINHAS MAIS LINDAS QUE JÁ LI AQUI NO TASCO.

    PS. A FOTO? É SUA, OU É DESSE GRANDE AMANTE DA IMAGEM FOTOGRÁFICA, QUE TÃO PRECOCEMENTE NOS DEIXOU? DE QUALQUER MODO ELA É LINDA.E DESCULPE AS MAIÚCULAS, MAS HOJE APETECE-ME….

  2. é minha, é.

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