O perigoso trilho da personificação do mal

É indubitável que Vladimir Putin é um déspota, sem escrúpulos. E a questão essencial não é se há outros ou não. Até porque sabemos que há.

A questão essencial é se só agora ele se revelou como tal.

Obviamente que não. E, no entanto, todo o chamado “Mundo Ocidental”, do qual fazemos parte, hoje chocado e revoltado com a sua ofensiva bélica sobre a Ucrânia, num conflito armado que dizima vidas inocentes, não se inibiu de fazer negócios, de engrossar fortunas, e até, ficar na sua dependência.

Já se sabia quem era Vladimir Putin quando a Europa – leia-se França e Alemanha -, aceitou ficar em grande parte dependente do gás russo. Ou quando Portugal foi à Rússia vender vistos gold. Ou quando a OTAN começou a expandir-se para o outrora Bloco de Leste, rumo à fronteira com a Rússia, em violação do compromisso por si assumido de não fazer tal.

Tudo isto foi acontecendo enquanto jornalistas, activistas e opositores a Putin, eram assassinados; enquanto os envenenamentos se tornavam uma espécie de instrumento de política internacional russa, etc.

Da mesma forma que o “Mundo Ocidental” sabe bem quem é e que é Xi Jiping e a China. E se a China resolver invadir a Ilha Formosa, ou Taiwan, ou que se lhe quiser chamar, o mesmo “Mundo Ocidental” que deslocou para a China a sua indústria, e que se tornou dependente dos seus fornecimentos de bens e capitais, vai bradar “Sacanas dos chineses! Maldito Xi Jiping!”.

Para perceber a guerra bárbara – como são todas as guerras -, que se está a desenrolar na Ucrânia, é preciso perceber como se chegou até tal ponto. Como se pode solucionar, para evitar mais perdas humanas. E o mero belicismo não dá resposta a nenhuma das questões. Pelo contrário: a lógica de resposta belicista é preocupante, tal como é o anúncio do reforço militar por parte da Alemanha.

A solução terá de ser política. E, para tal, temos de perceber o que se fez mal e corrigir. Assumir que o mal não começa nem acaba em Vladimir Putin. Que houve e há decisores políticos, eleitos em democracias ocidentais, que permitiram que se chegasse a este ponto. Que há gente a enriquecer sem escrúpulos com o ponto a que chegamos. Que o capital sem pátria só é Rublo, Dólar ou Libra, enquanto for conveniente à sua circulação e rendimento.

Tem de haver boicote económico puro e duro. Não há espaço para a hipocrisia que já se constata, há muito, na defesa do Planeta, onde há quem brade que não há Planeta B, mas não consegue resistir a ter o último Iphone. E depois, é precioso ser coerente e não estar disposto a negociar ou transigir a dignidade humana, seja a que título for, seja pelo conforto que for.

Se queremos sociedades sem tiranos, não pode haver negócios nem almoços com os ditos.

Sim, é o caminho mais tortuoso. Mas, pensar-se que a solução é de escalada militar, é precipitar o risco nuclear e a construção de uma nova civilização feita, quiçá, pelas baratas ou qualquer outro ser vivo resistente às radiações.

Vladimir Putin é o que é, e o que há muito demonstrou ser. Nem mais nem menos. Mas, se fizermos dele a encarnação do mal, estamos a branquear opções políticas, económicas e sociais, seus agentes e beneficiários. E estamos, também, a branquear a nossa própria responsabilidade.

Não é nada de novo, pois já aconteceu com Saddam, essa personificação do mal: foi enforcado, e, no entanto, olhando para o Iraque, o resultado está à vista. Com a grande diferença que, agora, o palco é a Europa. Como foi nas duas Guerras Mundiais.

Comments

  1. José Meireles Graça says:

    Acabe-se portanto com o comércio mundial e com a circulação de capitais, desde que os destinos não sejam de regimes que Mário aprova. Putin e Xi não, Castro e Maduro sim. E quando vivermos em autarcia económica e a OTAN se extinga as guerras esfumam-se porque se não houvesse vistos gold nem aquela maldita aliança a Rússia nem sonhava em invadir a Ucrânia. Aliás, antes da invenção do capitalismo nem sequer havia guerras.

  2. Rui Naldinho says:

    Primeiro, utilizando o seu raciocínio, não percebo qual a diferença entre o regime Chinês de Xi Ji Ping e o regime de Cuba ou da Venezuela. Não são ambos comunistas?
    Ou para si a China tem um comunismo especial de corrida?
    Já a Rússia aderiu ao capitalismo, ainda que tenha ficado com resquícios de um passado tenebroso. Aquele ADN estalinista que lhes é muito peculiar. E esse é o verdadeiro problema.

    Segundo, é lógico que no tempo da União Soviética e da China de Mao, havia guerras. Como havia na antiguidade, na idade média, na idade moderna e até no século passado. Até se exterminarem populações indígenas como nos EUA, Brasil, México, etc.
    Lembro-lhe por exemplo, dos conflitos no Afeganistão, bem recentes no contexto histórico, onde russos primeiro, e norte americanos trinta anos depois, se atolaram até à cintura.
    Só que nessa época, a China e a Rússia, exceptuando-se o plano militar, eram ambos países pouco desenvolvidos no plano económico. Bastante atrasados até no plano tecnológico. Com excepção da indústria de guerra, para o qual canalizavam todo o seu esforço orçamental, as populações sempre viveram com parcos recursos.
    Quando caiu o Muro de Berlim e se desfez a União Soviética, por um lado, quando a China aderiu à OMC, por outro, o que o Ocidente lhes devia ter imposto era a democracia plena dos seus regimes políticos, se quisessem que a globalização lhe fizesse chegar o desenvolvimento tecnológico que veio a verificar-se.
    Nada disso foi exigido. Até dava jeito uma ditadura, pois um regime sem direitos sociais e liberdade individual é um regime economicamente barato.
    Está à vista.

    • Paulo Marques says:

      Sim, senhor, Cuba, Venezuela e China têm regimes absolutamente idênticos, não só com políticas internas e externas exactamente iguais, bem como resultados.
      Já Marx tinha escrito, a verdadeira democracia é a ditadura de meia dúzia de pessoas a controlar os meios de produção, tal qual.
      Enfim, disparate de ciência política à parte, e aos “nossos” filhos da puta, exige-se algo? Até Israel vem dizer que “há judeus dos dois lados”, e ninguém se escandaliza. Mate-se Xi e Putin, e desce a paz dos céus, só pode.

    • Paulo Marques says:

      Já agora, esqueceu-se do RU no Afeganistão, com resultados idênticos.


    • A China de 2022 só nominalmente é comunista. Quanto ao resto, inteiramente de acordo.


    • Certo. Nada como impor a democracia pela força das nossas baionetas ou quiçá, contratando de preferência alguns condottieri para submeter os atrasados dos sino-russos, assim como se fez no Afganistão…

  3. JgMenos says:

    Como tudo tem um princípio, acabarão a descobrir um qualquer trauma justificador do Putin.

    Os dados são o presente.
    O que há a decidir é o futuro.