“Porque os bois têm cornos e há coisas que temos de chamar pelos nomes!”

Este post “caiu” na minha caixa de comentários. Vem do blogue agoradigoeu e merece a vossa total atenção. Obrigado por teres escrito este texto assim, sem mais nem menos! Mesmo!

Fica então o post “Porque os bois têm cornos e há coisas que temos de chamar pelos nomes“:

“As pessoas mais próximas perguntam-me o que tenho. Porque estou assim. Mas eu não sei o que significa o assim. Sei que não me apetece falar. Sei que o meu coração bate com mais força. Sei que não estou triste, mas também não me sinto feliz. Ansiosa. Sim, sinto-me ansiosa.

Desistir da minha carreira de professora foi sentir a perda do que nunca foi meu. Não sei se o mais difícil foi desistir ou se foi sentir a desilusão. A desilusão de ter percebido que uma pessoa pode fazer tudo, mas o tudo não foi(é) suficiente. E eu tenho aquele génio difícil! Aquele que se desilude aos bocadinhos… aos bocadinhos e em silêncio! E a desilusão não foi com os meus alunos, nem com os meus colegas ou com meus superiores hierárquicos. Desses sempre recebi o reconhecimento e a motivação para continuar. A desilusão foi mais profunda. A desilusão, essa senhora que me tolda os dias, essa foi com o meu país.

Deixei de me sentir uma cidadã portuguesa que é considerada válida e útil, a um país que investiu na minha educação. Esta merda de sucessivos governos (não encontrei uma expressão mais nobre, porque os bois têm cornos e há coisas que temos de chamar pelos nomes) deram-me 11 contratos de trabalho para assinar, com inicio a 1 de Setembro e término a 31 de Agosto, do ano seguinte. Em determinado artigo do contrato podia ler-se “necessidades residuais”. À medida que os anos foram passando eu abreviava a leitura do contrato, para não vomitar em cima do dito. E o ano lectivo começava. E a magia de ter à minha frente uma plateia de adolescentes que sente poder ser tudo, é trabalhar, todos os dias, com a vontade (possibilidade) de tornar o mundo um espaço melhor para se viver. E os anos foram passando. E eu continuei a assinar os malditos contratos. Fogueira com eles! Desculpem-me aqueles que, de boca cheia, dizem que os que saem para o estrangeiro, estão a abandonar o seu país. A esses digo, apenas, que deixei de querer pertencer à classe dos resíduos. A antecâmara em que se vislumbra a possibilidade de reutilização ou de reciclagem, é aquela onde eu não quero estar! O estado não pode dar emprego a todos os professores, dizem os que não têm nada de inteligente para dizer, emprenham pelos ouvidos, as bestas! Eu admitia que passados 10 anos me dissessem que o meu posto de trabalho foi extinto. Por cortes orçamentais, por redução de alunos, porque se deixou de considerar o ensino das ciências importante, o que seja. Mas não esqueço que o meu país não me tratou com a dignidade que merecia, nos 10 anos em que desempenhei (com classificação excelente) as minhas funções. E só me ocorre cuspir (acaso soubesse) nesses pulhas sem rosto e raras vezes com nome.

Feliz dia aquele em que me achei mais do que resíduo e decidi inscrever-me no mestrado em neurociências. E percebi que os miúdos, na escola, até gostavam que lhes contasse das coisas que fazia lá pelo laboratório. É que as pessoas parecem esquecer-se de que para ensinar é preciso saber fazer. Um professor que ensina o que lê no livro é aquele que nenhum estudante admira ou respeita. Recordo-me, como se fosse hoje, de uma aula de ciências naturais que tive no 5º ano, enquanto aluna. Fiquei fascinada com o método científico e perguntei à minha professora se era cientista. A senhora olhou para mim e disse “Oh menina não seja burra, acha que se eu fosse cientista estava aqui?” Naquele momento eu risquei a senhora do meu leque de professores. Porque eu achava que só me podia ensinar quem sabia fazer o que estava a ensinar. Ingénua. Infantil. Que seja!

O doutoramento já foi coisa séria. É que o método científico é um vício. E no meu trabalho as respostas foram sempre frutíferas em questões. E é concreto. E é estimulante. E o país investe. E o contribuinte investe. E eu fico doutora. E pronto, já sei! O país não tem que dar emprego a todos os doutorados. Pois não, não tem! Aliás, os outros países agradecem! Não investem na formação, mas colhem os frutos. É de facto um país com estratégia, este que me viu nascer!

E de modo que vou. Estou a ir na verdade. Escrevo num quarto de hotel em Lleida, a meio caminho do meu destino. Mas vou e parte de mim (a maior parte) ficou no meu país, aquele que me desiludiu. Porque os filhos são raízes. Porque quero que a minha filha aprenda em português, sinta em português! Porque as letras substituem-me os silêncios. E as letras, essas, só as sei dizer em português. E a ela volto sempre (porque regresso a mim, também). E por ela voltarei ao meu país. Mas quando voltar é possível que (alguns) pensem que sou mais útil. Porque temos aquela merda de auto-estima. O que vem de fora é que é bom! Estúpidos, é o que somos!

E por fim a pergunta. Aquela que todos fazem. E depois destes 2 anos? A resposta é NÃO FAÇO PUTO DE IDEIA. Já vivi a vida dos planos. Esses deram-me a antecâmara dos resíduos. Agora estou a viver a vida das oportunidades, pode ser que apareça a minha!

Comments

  1. Lindo!
    🙂

  2. Amadeu says:

    Muito bonito e triste

  3. João Paz says:

    Temos de derrubar quem nos derruba ou então esta escumalha de Migueis de Vasconcelos não só nos derruba como destroi o que resta do país e ainda se gaba de que “o povo português é pacífico”.
    È pacífico sim mas não é parvo e já antes defenestrou o primeiro Miguel de Vasconcelos.

  4. Sem espinhas….

  5. Em silêncio presto a minha vassalagem a tão nobre pessoa que com alma escreveu o que me calou.
    Os meus votos de felicidades, por curtos que sejam, são sinceros.

  6. maria celeste ramos says:

    Porque é assim o que é assim e o que fazem ao meu país e aos que se queixam tanto com tanta razão já que, ao menos, ainda nos deixam um espaço de lamento

  7. MAGRIÇO says:

    Se eu tivesse tido alguma vez responsabilidades na condução dos destinos deste país, morreria de vergonha ao ler isto. Mas sou eu, que tenho vergonha…

  8. Muito obrigada João Paulo, por ter publicado o meu texto muito obrigada a todos os que deixaram comentários a este post. Bem sei que são apenas comentários, mas para mim têm muito valor, porque demorei muito tempo a conseguir escrever sobre o que sentia e se o fiz foi a jeito de murro sobre a mesa. As vossas palavras são também uma fonte de força. Obrigada. Paula Pousinha.

  9. julio ferreira says:

    nem mais…….

    • Ivo Costa says:

      Obrigadora á autora “agoradigoeu” por ter conseguido descrever a desilusão e sentimento que lhe vai na alma… e também na minha e de outros tantos, desta brilhante forma. Não sou professor, sou apenas mais um licenciado que trabalha há 13 anos e que é cada vez mais assaltado pela vontade de novos horizontes, onde pelo menos se vislumbre um horizonte…
      Mais uma vez obrigado e que sejas bem recebida e valorizada para onde quer que te dirijas.

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