Coimbra não é uma lição

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Imagem roubada ao João Roque Dias

Quem tiver a oportunidade de consultar, por exemplo, documentação medieval, deparará com grandes oscilações ortográficas, visíveis no facto de as mesmas palavras surgirem grafadas de maneira diversa muitas vezes no mesmo documento escrito pela mão de um único escriba. Entretanto, passaram alguns séculos e houve milhares de pessoas a pensar sobre as questões linguísticas, pedagógicas ou didácticas, o que inclui reflexões sobre a escrita e conclusões sobre as relações complexas entre a fala e a escrita e entre ambas e a aprendizagem da língua, do conhecimento e do mundo.

Quando alguns políticos e professores universitários foram obrigados a decidir que era preciso fazer um acordo ortográfico (AO90), a Assembleia da República pediu vários pareceres científicos. A história é conhecida: apenas um desses pareceres era favorável ao AO90 e o seu autor chamava-se Malaca Casteleiro, precisamente um dos obreiros do dito acordo. De qualquer modo, os pareceres, como acontece com tantas questões importantes, só serviam para ser arquivados: basta lembrar as razões apontadas por Cavaco Silva para ratificar o AO90.

Em todo este processo, há, no mínimo, algo a que poderemos chamar uma leviandade deslumbrada que afectou pessoas e instituições respeitáveis. Foi o caso da minha universidade, a de Coimbra, a mesma que fez com a minha cidade merecesse o apodo de Lusa Atenas. Muitos professores da Faculdade de Letras são apoiantes e entusiastas do AO90, ao arrepio dos vários pareceres e em nome de uma lusofonia pervertida ou de uma uniformização ortográfica que iria criar edições únicas no Brasil e em Portugal, negócio que continua a desfazer-se em fumo.

A Universidade de Coimbra, por ser a mais antiga em Portugal, é frequentemente acusada de ser uma instituição medieval. No fundo, o edital que encima esta prosa é uma prova disso, tal é a confusão de ortografias: é a Idade Média da ortografia.

Convém não esquecer que este edital serve para iniciar o processo de candidatura ao cargo de Reitor da Universidade de Coimbra, o cargo máximo da instituição. Entretanto, os professores recentemente obrigados a fazer uma prova de acesso à profissão tinham de usar o AO90, tal como acontecerá com os alunos de todos os ciclos de ensino. Rui Vilar, Presidente do Conselho Geral da Universidade de Coimbra, está dispensado dessas preocupações.

Comments

  1. Joam Roiz says:

    Mais do que medieval, conservadora e, com excepção do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia, absolutamente neo-liberal e reaccionária. Bem haja, Professor Boaventura de Sousa Santos, por manter uma luz acesa de sabedoria numa Universidade caduca.

  2. Há que arejar a Universidade de Coimbra (uma referência académica do nosso país e do mundo) para que o cheiro a mofo se dissipe. De uma vez por todas, um livro não se afirma nem impõe entre os demais pela quantidade de pó que lhe cobre a capa.

    • António Fernando Nabais says:

      E arejar a Universidade de Coimbra implica usar uma ortografia diferente de linha para linha ou na mesma linha?

      • É óbvio que não, apesar de ser desaconselhável o uso de uma grafia híbrida no mesmo documento. Pior se torna, quando se trata de um edital de uma instituição como a nossa querida Academia. No entanto, importa tomar este exemplo numa perspetiva metonímica relativa à saúde sapiencial da Universidade de Coimbra, claro está, sem que se julgue a floresta pela enfermidade de uma das suas árvores. A questão é saber quantos “hectares” de árvores estão em agonia.

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