Luiz Pacheco – Um libertino passeia pela vida: Os amigos. Como conheci Pacheco


Eu era assumidamente um amigo de «vintes». As cartas e postais que me mandava, terminavam com frequência assim: «Um abraço (manda vintes!)». Houve um período, na década de setenta, em que fui promovido – passei a mandar «cinquentas» e às vezes «cens». Nos últimos tempos, o Pacheco não precisava já destas ajudas – tinha a reforma, todos os filhos criados e relativamente bem na vida. Tinha colaborações pagas em jornais. E estava mais sereno, menos propenso às loucuras. Só a língua e a prosa continuavam soltas, aceradas e certeiras como setas de zarabatanas. Na minha relação com Pacheco houve três marcos – o Café Gelo, onde nos conhecemos, a revista Pirâmide, de que fui um dos coordenadores e onde eles colaborou activamente e Tomar, onde ele me visitou e onde, com um grupo de amigos, vivemos uma noite épica de copos.
Foi em 1957 ou 1958, quando comecei a frequentar o Café Gelo que o conheci. Ele era na altura funcionário da Inspecção-Geral de Espectáculos, fiscal, segundo julgo saber. È difícil imaginar o Pacheco de fato e gravata, mas naquela altura a função pública implicava manter rígidos padrões de comportamento e de apresentação. Trabalhava no Palácio Foz, ali a dois passos, e aparecia cedo no café. Por ali paravam também, além do Pacheco, o Mário Cesariny de Vasconcelos, o Raul Leal, sobrevivente do «Orpheu» , o Herberto Hélder, o Manuel de Lima, o António José Forte, o Virgílio Martinho, o Ernesto Sampaio, o João Rodrigues, o Manuel de Castro, o Renato Ribeiro, o Pedro Oom e muitos outros, entre os quais eu. O Pacheco aparecia, pouco depois das seis da tarde, estragando o formalismo do vestuário com uns sacos e saquinhos onde transportava as suas edições que se punha imediatamente a vender (ou a oferecer). Maio de 1958 foi uma época escaldante, com o furacão Delgado a incendiar as imaginações daquele grupo de poetas, todos, ou quase todos, antifascistas
piramide
A Pirâmide surgiu nesse clima de entusiasmo e de exaltação política. O Pacheco colaborou no primeiro número, que saiu no começo de 1959, com um texto muito interessante – «Surrealismo e Sátira (de André Tolentino a Nicolau Breton)». No segundo número, que saiu no mesmo ano, dedicou um longo extra-texto a rebater a crítica que se abatera sobre o grupo, após a saída do primeiro numero – «A Pirâmide e a Crítica». No terceiro e último número, não colaborou. Entretanto, em 1962, saí de Lisboa e perdemos um pouco o contacto. Mas através do Forte e do Herberto Hélder, meus colegas na Fundação Gulbenkian, o Pacheco lá me descobriu e reatámos a correspondência. Ele enviava-me as suas edições e eu ia-lhe mandando «vintes» de cada vez que lhe escrevia – uma nota de dólar como ele às vezes também chamava às notas verdes com a imagem do Santo António.
Morava e trabalhava em Tomar. Um fim de tarde, quando cheguei do trabalho, quem estava em minha casa? O Luiz Pacheco. Sobre o tapete da sala, deitado no chão, ele e os meus filhos, na altura com cinco e três anos respectivamente, faziam desenhos com lápis de cores nas páginas de livros novos. Livros que o Luiz Pacheco adquirira com um crédito aberto por Manoel Vinhas numa livraria da baixa lisboeta. Acusado por Eduardo do Prado coelho de não ter ideias, respondera «Pois, só tem ideias quem lê livros». Obtivera assim uma espécie de bolsa para comprar livros. E era nesses livros novos, edições francesas, obras de Sartre, de Malraux, de Breton, de Merleau-Ponty, que os miúdos, incentivados pelo Pacheco desenhavam. «- Que bonito!», dizia ele – «Olha, uma aranha!». Os garotos adoraram-no.
A história desses livros é curiosa: na sua coluna semanal do Diário de Lisboa, Eduardo do Prado Coelho criticara desfavoravelmente o livro de Pacheco «Crítica de Circunstância», elogiando a forma como estava escrito, mas acusando o autor de «não ter ideias». Pacheco retorquiu dizendo que, efectivamente, tendo vendido os seus livros, tinha ficado sem ideias, pois os livros é que nos dão as ideias. Depois, a seta envenenada: dizia que os «Coelhos» eram para ele uma maldição – no liceu fora aluno do António Diogo do Prado Coelho, avô do Eduardo, que o obrigava a recitar a «Balada de Neve». Na Faculdade de Letras tivera como professor Jacinto do Prado Coelho, que só falava nos heterónimos do Pessoa. «Quando pensava que já estava livre dos Coelhos, aparece-me o Eduardinho…». Manoel Vinhas, o seu mecenas, terá achado graça à afirmação de quem não lê, não tem ideias e abriu um crédito de mil escudos (muito dinheiro naquela altura) numa livraria. E ali estava o Pacheco em minha casa com dois enormes sacos de livros que os meus filhos iam enchendo de desenhos – «Ficam muito valorizados», dizia-me o Pacheco, com ar grave, ante o meu olhar desolado ao ver as páginas cobertas de rabiscos.
pacheco
Depois do jantar saímos. Apresentei-o aos amigos tomarenses – o Arnaldo, o Manuel, o Camilo, o Fernando… O Pacheco causou sensação. Ainda há dias, o Manuel Simões me reproduziu o pachequiano discurso (confesso que a minha memória não é tão privilegiada – passaram mais de quarenta anos! – e tomei apontamentos). Num pequeno café, perorou sobre o trauma da «morte do pai». Recordou-se do dia em que o pai morreu. Começou a perguntar-nos, um por um, «Tu tens pai?», mais jovens, todos os cinco tínhamos ainda pai. Pacheco, não desarmou – gritou para o dono do café que atrás do balcão remoía pensamentos inescrutáveis: «O senhor tem pai?» – contou-nos ainda como, no dia em que o pai morrera, mergulhado numa indizível tristeza deitou-se sobre a cama no seu quarto, sozinho com a sua dor. Uma criada veio dar-lhe um beijo na face. E nunca mais esqueceu esse gesto afectuoso. Contou-nos a história dos livros oferecidos pelo Vinhas e a maldição dos Coelhos que o perseguia desde o Liceu Camões. E, entre histórias e copinhos diversos – ginjinha, amêndoa-amarga, eduardino, évora, anis, aguardente de figo… lá fomos percorrendo a via-sacra dos tasquinhos e botequins nabantinos. Os amigos foram-se despedindo. Quando ficou sozinho comigo, deu-me bons conselhos – eu fazia crítica semanal no Jornal de Notícias, crítica de poesia, e dizia mal de quase tudo (ao José Régio, por exemplo, na reedição da «Poemas de Deus e do Diabo», acusei-o de fazer «poesia de sacristia!»). Aconselhou-me moderação. «És um escritor! Há coisas que não se dizem!». Tinha toda a razão, claro. Embora o conselho também se lhe aplicasse – Fernando Namora, Vergílio Ferreira, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Eugénio de Andrade, Lobo Antunes, Saramago, entre muitos, outros que o digam. As quatro da manhã surpreendeu-nos a ambos em frente da estação de caminho de ferro onde ele ia apanhar o comboio que o levaria ao Entroncamento e daí partiria de regresso às Caldas. Os candeeiros de iluminação pública imersos numa neblina densa, típica da cidade do Nabão, criavam uma atmosfera irreal.
-Isto existe mesmo ou estamos bêbedos? – Perguntou-me.
– As duas coisas – respondi.
– Não. Isto é uma invenção tua.
O comboio chegou. Despedimo-nos. Mandou-nos depois um postal muito tocante, agradecendo a recepção que teve.
Outro encontro com o Pacheco, acho que o último, foi na Feira do
Li
vro de Lisboa. Fomos beber uma cerveja a uma das esplanadas do alto do Parque. Mostrou-me, com orgulho, o cartão de militante do Partido Comunista e contou-me o que motivara a (tardia) adesão. Tem sido referido por numerosos «cronistas»: assistiu ao funeral do Ary dos Santos, viu a bandeira do Partido cobrindo-lhe o caixão e pensou que friorento como era, lhe calhava bem aquele agasalho da bandeira. E no dia seguinte mandou um recado ao José Casanova, do Comité Central, para que lhe fizesse chegar um formulário. E ali estava ele, o libertino, duzentos por cento anarca, integrado num partido que primava pela disciplina. Ele que tanto condenara homens como Soeiro Pereira Gomes ou Alves Redol fora dar, por causa do frio onde eles tinham chegado por convicção política.
Por curiosidade incluo aqui o texto de uma carta que Pacheco me escreveu em 1998, uma das últimas que dele recebi – eu tive um grave acidente de automóvel que me deixou quase um ano «fora de jogo» e quando voltei à vida activa, Pacheco tinha mudado de lar e tive dificuldade em reencontrá-lo.
carta
Carta de Luiz Pacheco a Carlos Loures

Palmela, 7 de Outubro de 1998

Caríssimo e Velho Amigo
(do Gelo, da Pirâmide, de Tomar, etc.)

Gostei muito de ler a tua carta. Achei que te devia uma explicação desta minha edição do Dostoievski. Não creio que saibas tudo: em 1995, ainda em Setúbal, num quarto bera como uma tumba, achei que ou fazia mais algum com edições ou estava tramado. Daqui este ressurgimento, canto de cisne final ou de corvo maluco da Contraponto. Não era por gracinha literária: era por «vai, Maria, com as outras», isto é, entrar no jogo de escrever para o mercado (aquele mínimo mercado que há…). Falas dos teus trabalhos de forçado das letras com tradutor. Mal podes imaginar que, aí por 78,79, me tramaste sem querer. Foi assim: eu preparava para a LER, livraria e delirante editora de Campo de Ourique (onde, por então, também morava em casa de uns amigos, «asilava», melhor dizendo, trabalhos de tradução, conselhos literários e dois volumes de compilação de artigalhadas minhas, que foram os «Textos de Guerrilha», I e II (ainda há, eram a 200$00 e 300$00, estão, parece, a 1 conto. Mas eram malta amiga, o Luís. pai e filho, este depois na Gradiva e, agora, com outra editora, parece que a Bizâncio (?). Davam-me todos os dias uma nota de 50$00. A certa altura, recomendei-lhes uma versão de «La bête humaine», do Zola, que eu achava giro traduzir (havia, parece-me, uma edição de 1910 ou 1920, da Guimarães. Compro o francês e caio para o chão quando o Luís pai me mostra uma edição quase recente da Europa-América e em versão tua!
Adiante – a tua versão.
Esta coisinha do Dost, trouxeram-ma da Biblioteca de Santarém (a tua versão), eu apenas tinha a da Inquérito, do José Marinho Mas era esta que me convinha, mas naquele processo do scanner, que fotografa ou filma ou como é? As páginas iguaizinhas. Era mais rápido, mais barato e dispensava a minha revisão (a minha vista está bera). Não foi assim. Tiveram de ir pró computador, 3 provas – a edição saiu caríssima. Tive de rever, tive de comprar a edição da Pleïade, de pedir a versão espanhola. Já te terei contado isto. Mas ficou muita coisa por emendar. É assim: por mais escrúpulos, dúvidas, boas intenções de traduzir pelo melhor, chega aquela data em u o livro tem mesmo de ficar despachado, pronto a vender-se, a recuperar o que já se gastou, pagou.
És editor, estás no meio há que anos, sabes que é assim. E depois nem dá gosto olhar para a edição, saber-lhe os defeitos, o muito que falhou. E eu fiz 73 anos em Maio. E já estou neste lar há 2 anos e dias (Vim a 1 de Outubro de 1996.
E tenho 2 títulos mais. E uma versão do Umberto Eco. E planos que chegavam para outra vida. LOUCURA! Tenho é que parar. Conheces o meu sistema. Com um bom ficheiro, sempre actualizado (repara na informação que me deste hoje sobre a tua nova morada – e como é que eu iria adivinhar, saber?…), consigo recuperar em poucos meses. Mas o livro não tem a expansão que devia – ou podia – ou, até, merecia. Dei uma edição à Audil… Será que pagam? E quando? Perdi, agora, um amigo fixíssimo de há 40 anos, o Fernando Fernandes, da Leitura, do Porto. Não morreu, felizmente! Reformou-se. O Joaquim Machado, de Coimbra, está tão velhadas como eu. São duas pessoas, estas, que me ajudaram muito, in illo tempore, e de 95 para cá.
Próximos títulos: Viva a Alegria: Prazo de Validade, L.P., Isto de Estar Vivo, do mesmo. Talvez a 3ª edição dos Exercícios de Estilo, na Estampa. E o Agostinho de Macêdo, o Padre Lagosta – beberrão, fodilhão, aldrabão, reaccionário. Mais do que o Padre Milícias.

Abraço do

Luiz Pacheco

Comments

  1. isac says:

    Já estava convencido há muito. Agora fiquei ainda mais. Na minha próxima “volta dos alfarrabistas” vou procurar Luiz Pacheco.

  2. Alguns dos livros, como o «Libertino», talvez encontre na FNAC – quanto às edições da Contraponto, com pequenas tiragens, é mais complicado – só nos alfarrabistas, de facto. E com sorte. Se mora no Porto, tente a «Modo de Ler». São muito bons, têm um excelente fundo.

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