Um contributo metafórico para o dia da reflexão…
Era 3 de Maio de 1981. As aulas da minha universidade britânica, em Cambridge, tinham acabado. Fui convidado pelo ISCTE, hoje IUL (Instituto Universitário de Lisboa), para dar aulas de Antropologia. O ano académico em Portugal acabava quando acabava. As horas de aula eram infinitas. O mínimo era uma hora e meia. Era uma canseira, principalmente para quem estava habituado a ler aulas de, exactamente, 45 m, por outras palavras, 15 páginas. Estava habituado ao metro de Londres – em Cambridge andávamos de bicicleta – metro no qual, devo confessar, sempre me perdia. Cambridge é pequena, Londres imensa e Lisboa um quarto dessa cidade de doze milhões de habitantes.
Estava à minha espera uma querida amiga, a hoje Professora Doutora Karin Wall, uma grande amiga até ao dia de hoje. Dava aulas em minha representação, enquanto eu chegava. A seguir ao aeroporto, fui acolhido por um casal muito amigo, anglo-lusitano. Não tinha que me esforçar a falar apenas com consonantes, as vogais eram comidas. A minha primeira aula foi numa terça-feira, 4 de Maio, às 10 da manhã. Aula escrita, mal acabei de ler convidei os discentes para um debate no meu gabinete, quatro, por vezes, quinze minutos cada. Entre a língua galega, que bem conhecia por causa do meu trabalho de campo, o francês, base do meu ensino em Paris e o obrigado inglês, a minha língua mãe, fui falando com eles. Em quatro idiomas. A minha sorte foi que os estudantes estavam bem preparados para entender este Doutor que conseguia explicar-se de um modo cansativo, mas certo.
Foi o dia em que inaugurei os debates de gabinete ou tutorias. Bem sabia eu que mais de 45 m era impossível para qualquer um fixar a atenção e lembrar. Reiterar as ideias em debate, com base nas folhas escritas com a síntese da aula, como costumava fazer em Cambridge, operou o milagre tipo Adágio de Beethoven, Für Elisa. Os discentes eram capazes de ler antes, sintetizar numa folha, debater e provar as suas hipóteses.
Desse primeiro dia, duas situações caricatas fazem-me lembrar a importância de nós, docentes estrangeiros, ensinarmos a aprender. Os discentes tinham por hábito dizer que não acreditavam na leitura feita, perguntava-lhes qual o motivo e o autor lido para comparar e provar tal hipótese. Começaram, como consequência, a ler sempre dois autores que escreviam de forma diferente sobre a hipótese da aula, matéria para o debate em tutoria. Os meus colegas do, nesse tempo, pequeno ISCTE, ficaram curiosos e falaram de imediato comigo para se inteirarem de como se operava esse milagre dos estudantes lerem.
Expliquei de forma sintética: é uma conversa com livro na mão, de 15m, que pode ser repetida em tempo e hora que o estudante necessitar, com um espaço de dois dias entre aula em sala e tutoria em Gabinete. As ideias germinaram e, até ao dia de hoje, é praticada esta forma de processo de ensino – aprendizagem, como tenho escrito em vários textos meus. O problema era que não havia Biblioteca. Fundámos uma desde esse primeiro dia. Ao terminar o dia tão cheio de curiosidades, sai à rua, como habitualmente, às 17 horas. Os meus horários britânicos eram sagrados. Karin Wall estava à minha espera para me ensinar o percurso do Metro, que devia medir 20 metafóricos centímetros, comparado os meus hábitos de Londres e Paris. Era um metro de brincar ao longo das três linhas que usava.
Foi também nesse primeiro dia que aprendi que os portugueses andavam pelas ruas da amargura. Todos os docentes cumprimentavam, perguntavam como estava e a minha resposta habitual, até hoje, era, muito bem, muito obrigado – uma tradução do meu britânico: I’m well, thank you. Um colega que mais tarde examinei para as suas provas de Agregação, disse-me que era uma péssima má educação. Em Portugal, quem estivesse bem, corria o risco de ganhar a inveja dos outros que andavam sempre doentes, ou ser-lhe solicitado empréstimos e outras explicações que não entendi pela falta de hábito. Na Grã-Bretanha, bem ou mal, é natural dizer-se que se está bem. As nossas vidas eram privadas e não uma forma pública de entregar as tristezas aos outros, que mal conhecíamos. O meu costume era para eu optar, sem a colaboração de mais ninguém: era a minha vida de adulto.
A rua pecava pelos 40º de calor do dia, imenso para quem vem de 0º graus, normalmente, excepto nos verões, onde os 15º eram sufocantes.
E foi assim que a pouco e pouco me fui adaptando à língua e hábitos lusos: muita gentileza pública, muito dizem por ai que, mas só nas costas do coitado de quem falam.
Suficiente para um dia de reflexão pré-eleitoral. Bach e Beethoven cantam para mim, enquanto espero pelo dia e hora de sufragar.
Com lembranças, como eu me enganava desde esse primeiro dia para dizer com licença, deixo o leitor pensar nos avatares de um cidadão que transporta em si mais do que cinco nacionalidades e seis línguas.
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