Comentário a comentários sobre «Falando de democracia»

Desde o primeiro texto desta série que tenho vindo a pôr em causa o conceito de democracia que enforma o regime político em vigor em Portugal e noutros estados. Nesse primeiro texto («Enquanto não somos deuses»), socorria-me de Jean-Jacques Rousseau e depois fui pedindo outras ajudas. Seria ocioso repetir aqui toda a argumentação que fui expendendo ao longo de trinta textos (série de que, aliás, o próximo será o último), pois ninguém que tenha lido algumas dessas crónicas alimentará dúvidas quanto ao que penso sobre o tema. O que, obviamente, não signifique que concorde. E por que raio, haviam todos de concordar comigo? Esperar essa unanimidade de opiniões seria estulto da minha parte Porém, nem que seja eu o único a concordar com o que escrevo, tenho o direito de o expressar. O que não me coíbo de fazer, embora saiba que o que aqui escrevo não tem qualquer influência no regular funcionamento das «instituições democráticas». Era o que mais faltava.
Vem este intróito a propósito dos comentários que João Cruz tem vindo a fazer a «Rotativismo e “alternância democrática”», ontem publicado. Nesses comentários acusa-me de diversas felonias, a saber:
a) – acho que milhões de portugueses são manipuláveis débeis mentais o que
b) – no mínimo é paternalista e no máximo fantasioso;
c) – que o meu paternalismo é semelhante ao que anima as vanguardas revolucionárias.
Penso que nestes três pontos se sintetiza o ponto de partida para a argumentação com que João Cruz teve a amabilidade de contemplar um texto que apenas pretende chamar a atenção para um aspecto histórico e particular de um conceito de democracia com o qual, na plena posse dos meus direitos de cidadania, tenho vindo a manifestar o meu desacordo. Direitos que (vá lá!) João Cruz me concede porque, diz ele «A ICAR – Igreja Católica Apostólica Romana? – orienta para seu lado, outras vanguardas detentoras de outras verdades orientam para outro. Enfim, as democracias plurais como a nossa também têm a virtude de cada um poder puxar a brasa à sua sardinha». Não sabia que existiam democracias «não-plurais», mas adiante, o autor destes comentários concede magnanimamente a cada um o direito à sua utopia, que é como quem diz à sua loucura.
Num comentário a um post de Adão Cruz, em que este nosso amigo aprofunda a explicação que eu tentei dar nas respostas a João Cruz, fazendo-o da maneira clara e directa que lhe é peculiar, o João comenta – «Valha-nos os blogs de gente culta e esclarecida para abrir os olhos ao povo apoiante!». Nunca tinham, que eu saiba, chamado ao Aventar um «blog de gente culta e esclarecida». Registe-se o elogio.
Fique também registado que nunca me animou a intenção de fazer proselitismo, de esclarecer, de iluminar ou de ensinar seja quem for. Nem estou a querer criar um novo partido, nem uma nova vanguarda, nem uma nova igreja. Escrevo para mim próprio e para quem, eventualmente, esteja de acordo com alguma coisa do que digo. E também para os que não estão de acordo. A única pessoa que procuro esclarecer, é a mim mesmo. E já tenho tarefa que baste.
A minha argumentação foi sendo feita nos textos que compõem a série. Não vou repeti-la só porque um leitor da sua trigésima parte não a aceita. Nem lhe recomendo que a leia, não porque não a compreendesse, mas porque não a quereria compreender (direito que lhe assiste). Sem paternalismos, sem querer iluminá-lo ou conduzi-lo seja onde for, recomendo-lhe apenas que leia com atenção os seus comentários. Talvez neles descubra alguma daquela arrogância e pesporrência de quem chega a uma aldeia e pretende impor justiça a torto e a direito, de pôr as coisas no seu devido lugar. E, sobretudo, esclarecer os pobres aldeãos que sem a sua vinda continuariam na escuridão. Embora seja uma aldeia de gente culta e esclarecida.
Em suma, o João Cruz tem todo o direito a dar sua opinião e estou-lhe grato por ma ter dado. Não tem é o direito de ironizar, ou de colocar suspeições, sobre o direito que os outros têm às suas próprias opiniões (ou utopias, se quiser).
E sobre este tema, tenho dito.

Comments

  1. Adão Cruz says:

    Este é um texto sério e sobretudo humilde, a grande virtude de todas as almas que, embora sabendo muito, se abrem, sem imodéstia nem falsa modéstia, não com o intuito de ensinar o que quer que seja, mas com a vontade de aprender e fazer do pensamento a grande força da comunicação humana.

  2. Luis Moreira says:

    Carlos, o João não estava muito seguro do que escreveste o que não o desculpa de te atirar com suspeições para cima, claro.

  3. Ena, um post só para mim! Ó meus caros amigos, o João está seguríssimo acerca do que escreveu e mantem tudo o que foi afirmado. Perdoe-se-me, porventura apenas, algum tom mais irónico ou ofensivo. O que eu lhe estou a tentar explicar, explica talvez com mais eloquência a vossa própria sondagem neste blog acerca de tendências de voto. Isto é, também os leitores deste blog, que não serão propriamente parolos da província que vão acriticamente atrás do primeiro cacique que ofereça frigorificos, preferem uma escolha ao centro, isto é, nos dois partidos que têm sido maioritários desde os anos 70 e que têm partilhado a governação, a par com o CDS. O que convinha perceber, você e não só, é que uma larga maioria da população portuguesa faz essa opção em liberdade e responsabilidade e não como resultado de ignorância ou manipulação, como foi por vós repetido. O que lhe estou a procurar explicar é que as escolhas destes cidadãos são tão legítimas quanto esclarecidas e que, no contexto da complexidade democrática que reflecte a complexidade da vida, traduzem porventura conceitos como “voto útil” ou “mal menor”. Entre outras motivações, como a identificação com um programa, ideias ou protagonistas. O que o seu texto e posteriores comentários traduzem, é que os eleitores que optam por eleger o PS e o PSD são gente sem vontade nem discernimento. É desta última convicção, aliás, que nascem as vanguardas iluminadas (dai a similitude): os que vêem mais claro, mais longe, para além do óbvio, que é o governo do povo pela escolha dos seus representantes.Isto é, a “alternância democrática” é fruto de uma opção soberana do povo, e não de um “polvo” oculto que manipula o sistema. Coisa diferente é não gostarmos, como o autor não gosta, do resultado dessa escolha.E como não há soluções perfeitas de governação popular, haverá sempre descontentes a achar que as maiorias são manipuladas pelas máquinas partidárias. Enfim, de uma forma ou de outra a democracia continuará a aprofundar-se e o povo continuará a cultivar-se. E talvez dentro de uma geração o cenário seja mais do seu agrado. Até lá, não há nada como respeitar a vontade popular.Paz e Saúde!

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