Falando de sentimentos

Falando de sentimentos

 Ao ler o magnífico texto de Raul Iturra, “ No rasto da sexualidade caminha o amor…”, eu gostaria de deixar aqui a minha humilde opinião acerca deste e de outros sentimentos. Tenho muita dificuldade em dissecar os sentimentos (diferentes de pessoa para pessoa) isto é, em definir as incomensuráveis formas e manifestações dos sentimentos, até porque antes dos sentimentos há as emoções (diferentes de pessoa para pessoa), que lhes dão origem, e antes das emoções (diferentes de pessoa para pessoa) há as imagens (diferentes de pessoa para pessoa) resultantes dos estímulos que as provocam e aos quais cada pessoa reage de forma muito diferente, conforme o seu padrão neural.

Sem falar na apropriação do sentimento (o sentimento de si), na reflexão e na consciência que sucedem ao sentimento (diferentes de pessoa para pessoa). A emoção causada pelo apontar de uma arma, por exemplo, e o sentimento de medo, bem como a reflexão e a consciência a que leva essa emoção são muito diferentes entre um filho meu e um filho das favelas do Rio de Janeiro.

Assim sendo, os sentimentos constituem um mundo tão vasto de diferenças que me parece podermos incorrer em algum grau de estultícia, ao pretendermos dissecá-los, dimensioná-los, fraccioná-los, escaloná-los, hierarquizá-los, atribuir-lhes uma cronologia e uma metodologia intrínsecas, fora do campo neuro-científico. E mesmo aí (!?), quando o conseguiremos? Penso que nem é muito seguro abordá-los com algum grau de confiança dentro dos campos da psicologia, da filosofia e da sociologia. Há um único contexto em que me parece legítimo atrevermo-nos a abordar parcialmente e de forma particular os sentimentos e com eles lidar como matéria, contexto esse que se situa apenas no campo da arte. No seio do contexto poético, literário e musical, por exemplo. Mesmo assim, com a prudência de nos contentarmos apenas com a plumagem, as cores, a luz e o som.

Quando a “Biologia do espírito” for uma ciência incontestável dentro da neurobiologia, como espero, aí sim, podemos analisar e dissecar os sentimentos como fazemos hoje com as orações de um texto. Sem medo de que eles percam a beleza da mais nobre essência do ser humano.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Adão, uma maravilha. Tu e o Raul “esvoaçam sobre as pobres e desvairadas gentes”. E não meto o Carlos nas nuvens porque ele anda-me a atacar diariamente…

  2. Carlos Loures says:

    Desta vez, dou razão ao Luís – está um texto muito bom e que completa a perspectiva do Raúl. Luís, eu só te ataco diariamente por duas razões:
    a) – até ao fim do ano, estou com tempo disponível;
    b) – tu mereces – pois o PSD é lá coisa que se defenda! Considera-me a voz da tua consciência.
    Mas (Aleluía!) a partir de Janeiro, vou dar-te algumas tréguas. Porém, não abuses – senão, nem que passe o fim-de-semana a ler os teus posts e a criticá-los, não deixarei impune a tua laranjice. Aqui para nós – por que é que me convidaste? Logo no começo, quis ajudar-te e arranjei uma bronca de todo o tamanho…
    Um abraço para os dois – parabéns, Adão! porta-te bem, Luís.

  3. Raúl Iturra says:

    Caro Adão,
    Por andar sempre a usar estas linhas para escrever do que sinto, vejo, analiso e psicoanaliso, não tinha reparado no seu texto tão temido por falar de sentimentos. Não me parece possível fazer uma biologia do espírito. Seria uma ofensa aos sentimentos. A Biologia, e a palavra o diz, e uma dissecção dos sentimentos, uma autopsia dos mesmos, o que me parece impossível: nem há ideias, nem há elementos para abrir o espírito. Repare, se quiser entender assim, que a minha frase é no rasto da sexualidade, caminha o amor, indica já uma autopsia dos sentimentos. A sexualidade é uma força da natureza, sem a qual não podemos viver. É essa força colocada pela biologia em nós, para o nosso prazer que não tem palavras, especialmente se quisermos definir o orgasmo e não apenas a paternidade. A paternidade é uma relação social em segunda instância, porque na primeira, é o amor. Não o amor com quem podemos sentir o prazer sem palavras, sempre a dois, mas eternamente solitário. Compara um filho seu, existente ou não, com um de uma favela. Os sentimentos que há em eles, sem se conhecerem e de classes sociais diferentes, são exactamente iguais. A materialidade é essa penetração que nos seduz, a emoção é o desejo de estar dentro do corpo de quem amamos, sem classe, sem idade, sem género. Confesso não me lembrar do texto que escrevi – escrevo tantos – mas todos eles estão endereçados a apenas uma emoção, a do amor, que a materialidade sexual pode matar, como refiro em outro texto meu intitulado a paixão pode matar o amor. O único problema das emoções, é ter a valentia das aceitar, de falar delas, das por de parte no entendimento para as viver apenas. Há esse famoso debate entre Hegel e o seu discípulo Marx, na altura em que Hegel gostava de Karl Heinrich, e que diz o primeiro que para entender, é necessário ver o objecto, ripostando o segundo, acabada a paixão, que sem objecto não há nenhuma possibilidade de organizar o conceito. Debate que levara a cortar os laços de carinho e históricos entre eles. Penso que falar de emoção é a melhor poesia do mundo, um Shakespeare, um Frei Luís de León, um Calderón de la Barca, um Camões, um Delacroix…. um Goya junto a Modigliani e Van Gogh. Épocas diferentes, mas emoções sempre vivas. Goya nunca teria pintado A duquesa de Alba se não ter antes intimidades com Cayetana; ou os Fuzilamentos do três de Maio, se não for um ardente patriota anti Bonaparte; eu nunca teria escrito o meu livro de 1998 se não ama-se a família que me albergara enquanto estudava eu a sua história de vida, ou o do 2000, O saber sexual das crianças. Desejo-te, porque te amo – reparo no subtítulo, se não for pelas raparigas que orientaram o meu deambular pelos montes de Cordilheiras dos Andes. Falar de emoções pode ser um perigo social para outros, se antes não aceitamos que nós amamos a nós próprios. Não sou um homem de fé, é bem sabido, mas entendo bem a Moisés a as suas Doce Tábuas da lei…E mais nada digo, a gripe é um sentimento que refreia a razão….e gripe tenho eu agora, enquanto tento anima-lo a ser de espírito aberto e seja igual aos outros….como pode-se apreciar nos seus outros textos. Deve trazer a pintura para si…. E terá uma biologia do espírito…


  4. Amigo Raul Iturra, em primeiro lugar, as melhoras da sua gripe.
    Em segundo lugar queria dizer-lhe que nos encontramos em campos opostos, no
    que respeita ao entendimento das emoções e dos sentimentos. E gostaria de
    lhe dizer que a biologia do espírito é um conceito muito actual,
    praticamente irreversível, e cada vez mais aceite por todos os
    neurobiologistas contemporâneos. E esse conceito, ao contrário do que o meu
    amigo diz, em nada afecta a natureza das emoções e dos sentimentos,
    totalmente diferentes, umas e outros, em cada pessoa. O esquema neural é o
    mesmo em cada um de nós, na nossa espécie, mas o padrão neural da emoção,
    desencadeada por um estímulo exógeno ou endógeno, e que precede sempre o
    sentimento, e o padrão neural do sentimento, que precede a propriedade do
    sentimento, a reflexão e a consciência, são diferentes em cada um de nós. Em
    nada, mesmo nada, a biologia do espírito deprecia a natureza afectiva dos
    sentimentos. Estou em crer que enobrece a natureza desses mesmos
    sentimentos, ao aproximá-los o mais possível do racional e afastando-os o
    mais possivel do abjecto irracional.
    Para terminar, dado que isto seria conversa para muitas e muitas horas,
    queria dizer-lhe que nos fins do século XIX e princípios doséculo XX, a
    neurologia e a psiquiatria estavam fundidas, separando-se mais tarde. Hoje,
    o caminho é de novo a sua fusão, com a conclusão de que não há qualquer
    separação entre elas.
    Esteve há dias em Lisboa, a falar de tudo isto, o cientista americano Tom
    Insel, director dos “National Institutes of Mental Health dos EUA. Este
    senhor tem um orçamento de 1500 milhões de dólares para desenvolver,
    exactamente, toda a investigação nesta área. Este senhor termina uma
    entrevista que deu ao Público em 11 de Março passado, com a frase: “O NIMH
    está a criar as condições para se começar a pensar que, a menos que levemos
    em conta a biologia das doenças mentais, não vamos conseguir tratá-las”.
    Elucidativo.
    Caro amigo Raul Iturra, o amigo não me conhece, mas eu sou um espírito
    aberto, não duvide, e não precisa de me dizer para eu ser igual aos outros,
    pois eu serei sempre igual aos outros dentro das minhas diferenças.
    Se o amigo Raul aceitar, pode colocar este seu comentário em post, e eu porei a minha resposta. Seria interessante.

    • Luís Moreira says:

      Transforma em texto, é muito bom para ficar como comentário…