Ganga – o sábio das calças rotas

Da passagem do Zé por terras de Angola, não ficou apenas o irónico episódio “Rikamba”. Outras histórias houve, como as de um par de calças que no dia em que ele chegou a Luanda, deu tanta confusão.

Tudo porque ele estava no mercado de Kinaxixi, em Luanda, acabado de chegar de barco àquelas terras numa docemente quente tarde de Novembro de 1970. Acompanhava-o Manuel, já há muito de vida instalada na Fazenda Tentativa sita no Alto Dande, a nordeste de Luanda, onde era Fiel Auxiliar num dos armazéns do açúcar, e que lhe arranjara um lugar de motorista na Companhia.

O Zé queria comprar umas calças, pois as jardineiras que trazia, tinham feito o favor de se rasgarem de puídas que estavam, a começar entre-pernas mas já a ameaçar a denúncia traseiro acima.

“Que raio!” disse o Zé. “Não vou chegar nesta figura à Companhia. O que vão os patrões pensar de mim?”.

Manuel ria-se: “Não te preocupes que aqui encontras tudo o que precisas”. “Olha aqui esta banca de roupa”.

Movido pelos nervos, Zé tomou logo palavra com o vendedor, um negro ainda moço, de corpo franzino e de sorriso estampado na cara: “Preciso de umas calças”, puxando pelo peitilho das suas jardineiras, afirmou de modo peremptório “Ganga!” Ganga!”.

O olhar do imberbe vendedor alterou-se, transitando da alegria para o espanto “Ganga?!” disse ele “Nganga!”

“Sim, isso!” disse o Zé enquanto puxava pelas alças das suas jardineiras, “Ganga, ou Nganga, ou lá que merda chamam a isto”.

Manuel assistia sem comentários, mas ia deixando escapar umas fungadelas de um riso cada vez mais difícil de segurar, por trás de um rosto que tentava manter sério.

O jovem negro começou a repetir mais alto “Nganga!”, chamando a atenção de outros negros mais velhos que se aproximavam, enquanto Zé, sem perceber o que se passava, insistia “Tens disto ou não?”

O jovem vendedor que já deixara que o sorriso no seu rosto fosse substituído pelo espanto, continuava a apontar para o Zé e a dizer para os demais: “Nganga! Nganga!”

Zé voltou-se para Manuel, num misto de desespero e de estranheza: “Mas este gajo só sabe dizer aquilo?!”. E olhando em, redor para a pequena multidão que se juntou ao seu lado que remoía sons que ele não percebia, de novo demandou por Manuel “Ó pá, faz alguma coisa, porra! Eu só quero o raio dumas calças!”.

“Tem lá calma” disse Manuel “Tem lá calma que não estás em Belém. Aqui uma palavra pode ser outra coisa”.

“Outra coisa?!”, disse o Zé, cada vez mais espantado: “Mas isto não é Portugal?!”.

Para tudo piorar, uma mulher acompanhada por um homem que parecia ser seu pai, abordou o Zé, de modo submisso mas insistente, dizendo “Nganga ia kunoka?”. Zé arregalou os olhos: “Ó menina, ó menina, eu não quero confusões!”, e olhou para Manuel já desesperado “Ó pá, porra! Faz alguma coisa!!”. E a mulher ia insistindo, ao mesmo tempo que levantava os braços para o céu “Nganga! Nganga ia kunoka? Nganga ia kunoka?”.

“Ó menina, qual “cunoca” qual quê? Não me arranje confusões!” agarrou o braço do Manuel, que já não aguentando mais, ria desalmadamente, arrastou consigo dali para fora: “Vamos embora, pá, vamos embora que isto não é um mercado, é uma casa de loucos”.

Em pouco tempo alcançaram o carro da Companhia, e dali arrancaram com Manuel perdido de riso, enquanto que Zé olhava a toda a volta para se assegurar que não eram seguidos.

“Mas que raio foi aquilo? Alguma coisa foi e eu não percebi nada. Que foi aquilo?”, demandava o Zé a Manuel.

Manuel, já mais calmo e retomando a seriedade de rosto, sossegou o Zé:” “Aqui não se fala só português, existem dezenas de dialectos em Angola. Quando falaste em ganga e depois concordaste com o “nganga” ao mesmo tempo que puxavas pelo peitilho das tuas calças, estavas a te intitular sábio, sacerdote. Em kimbundo, “ganga” ou “nganga” é sábio ou sacerdote”.

“Kimbundo?!” Perguntou o Zé, ostentando estranheza.

“Sim, Kimbundo. É um dos principais dialectos daqui, é mesmo o mais corrente”, explicou o Manuel.

Zé escutou, desconfiado: “Então e que raio queria a mulher lá com aquilo da “cunoca” na frente do velho?”.

Manuel sorriu: “Não chove há meses e as culturas estão a sentir-se. Ela perguntou se eras sacerdote ou mestre de chuva, ou seja “Nganga ia kunoka”, percebeste?”. Zé encolheu os ombros: “Percebi que isto aqui é mais complicado do que eu pensava. Pensei que falavam todos português e mais nada!”.

No carro, começou a ouvir-se pela desgastada coluna de som do rádio, o coro da Orquestra da FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho) a cantar o hino “Angola é nossa”, e Zé comentou: “Isto é nosso?! Ninguém nos entende!…”

Manuel riu-se, e seguiu a condução sem mais comentários, em direcção ao Alto Dande.

Comments

  1. Carlos Fonseca says:

    Kamba Zé, kinene kunova !

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