Conversa de café

adão cruz

Estava eu no café e na mesa ao lado dois amigos conversavam. Um deles tinha o Jornal de Notícias aberto de par em par e dizia para o amigo:

-Já viste isto, pá, quatro ou cinco páginas sobre os pupilos do Cavaco? Este já foi dentro. Qualquer dia vai ele.

-Eh pá, não mandes bocas foleiras, porque o homem nem sequer foi acusado.

-É uma forma de dizer. Mas repara, pá. Cavaco foi o pai espiritual, o padrinho político, o professor, o conselheiro, o correligionário-mor de todos estes impolutos meninos! Como é possível a um homem destes, que diz que nunca se engana e raramente tem dúvidas, envolver-se e ser envolvido tão intimamente com tantos presumíveis criminosos de alto coturno (fraudes gigantescas, assaltos ao património, profundas crateras na economia, corrupção de alto grau, hipotéticos assassínios), e não dar por nada? Será que o Sr. Prof. e sua esposa, na conjugal intimidade, manifestam um ao outro a sua profunda surpresa e sentem náuseas por terem privado com gente desta? Não é preciso ser-se muito inteligente nem grande psicólogo, para descobrir nos outros, sinais ou indícios, por pequenos que sejam, de que são ou não são pessoas sérias e de confiança. Há sempre qualquer coisa que nos deixa de pé à frente ou de pé atrás. Sobretudo durante tantos anos de convivência. Toda a gente tem experiência disso. Todos nós aprendemos na vida a confiar ou a desconfiar das pessoas que nos rodeiam, baseados em sinais da sua vida, da sua personalidade, dos seus actos, dos seus negócios, das suas relações com os outros, dos aspectos da sua conduta no dia-a-dia. Há sempre grandes ou pequenos nadas que nos abrem os olhos e nos atraiem ou afastam . Grandes ou pequenos nadas que só passam desperdebidos se formos burros, cegos ou tontos. Será possível que, com tanto convívio e amizade, com tantas tarefas e trabalho conjunto, Cavaco nunca se tenha apercebido da gente com que andava metido? Será possível que Cavaco nunca tenha tido um grande ou pequeno nada que o fizesse parar para pensar, e descobrir o mar de trafulhas em cujas ondas seu barco navegava?
Ou, como grande timoeiro que julga ser, nada disso lhe importaria, seguramente confiante na certeza de que é necessário, a alguém, nascer duas vezes, para ser tão sério como ele?

-Concordo contigo, pá, em muito do que dizes. Mas bocas são bocas e devemos evitá-las. Na verdade, também eu me sinto estupefacto. Um caso isolado é um caso isolado, mas todo um staf, toda uma ninhada saída da barriga do cavaquismo, degenerar, segundo o que por aí corre e segundo parece ser, numa corja de ladrões, vígaros, corruptos, assassinos do pior que há, é um fenómeno complexo! Um fenómeno com uma textura desconcertante, multifacetada e muito intrincada que não nasce do dia para a noite. É um fenómeno que leva anos a criar raízes, a desenvolver-se, a estruturar-se, a escorar-se, a ancorar-se, a imunizar-se. É um processo intimamente ligado à área dos poderes e das Administrações, um processo e um caminho transversal a muitas personalidades e cumplicidades. Pode ter passado despercebido a muita gente, principalmente a nós, povinho ingénuo e marginalizado, mas, e aqui concordo plenamente contigo, dificilmente passaria despercebido a muitos padrinhos e correligionários que roeram muitas lagostas e mamaram bons copos nas mansões onde o fenómeno ia amadurecendo. Dificilmente passaria despercebido a muitas instâncias do poder e, muito especialmente, às esferas económico-financeiras onde Cavaco é catedrático.

Comments

  1. Ricardo Santos Pinto says:

    Excelente regresso. Parabéns!

  2. Zé Nabo says:

    É caso para dizer que você tem o ouvido afinado…

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