A lista de Relvas

De acordo com uma antiga Recomendação do Conselho de Europa e ao abrigo da Directiva sobre Serviços de Comunicação Social Audiovisual e da Lei da Televisão, o governo publica anualmente uma lista dos “acontecimentos de interesse generalizado do público” que não podem ser apropriados por operadores de televisão cujas emissões sejam pagas. A ideia é permitir que o valor económico de determinados eventos não seja explorado em detrimento do interesse que suscitam no grande público, permitindo aos operadores de televisão free-to-air de âmbito nacional solicitar aos canais por subscrição detentores dos respectivos direitos de transmissão, a preços não especulativos, o acesso à transmissão televisiva desses acontecimentos.

As características e o valor económico dos espectáculos desportivos fazem deles candidatos preferenciais a integrar aquela lista, sendo o futebol o que concita a maior adesão popular. Não estranha por isso que cerca de metade dos eventos habitualmente listados se refira ao futebol, sendo a parte restante preenchida com outras provas desportivas com tradição em Portugal (Volta a Portugal em Bicicleta) ou que envolvam a participação de atletas portugueses (nos jogos olímpicos, todas as participações; nos campeonatos da Europa e do Mundo das diversas modalidades desportivas, as participações na fase final; nas outras competições internacionais oficiais entre clubes nas modalidades de andebol, basquetebol, hóquei em patins e voleibol, apenas as finais). Os únicos eventos não desportivos integrados usualmente nestas listas são as cerimónias de abertura e de encerramento… dos jogos olímpicos.

Esta lista de acontecimentos de interesse generalizado do público não se confunde, assim, com uma lista de eventos de interesse público e muito menos com uma lista de ocorrências cuja transmissão compita ao serviço público de televisão assegurar. E apenas permite aos operadores de televisão que emitem em aberto – actualmente, RTP, SIC e TVI – adquirir, se o entenderem (a preços que são, em caso de desacordo, fixados pela ERC), os correspondentes direitos de transmissão detidos por operadores que emitem em sinal fechado – como sucede com a Sport TV.

Da segunda lista publicada este ano (a anterior, que deveria ter sido publicada até 31 de Outubro de 2011, apareceu apenas, por aparente desconhecimento do Governo, em 22 de Março de 2012) desapareceram sem qualquer fundamentação os jogos da I Liga (um jogo por jornada envolvendo uma das 3 equipas melhor classificadas nas 5 últimas épocas), os jogos das equipas portuguesas na Liga dos Campeões (um por jornada) e na Liga Europa (um por jornada a partir dos quartos de final). Para a época de 2012/2013, o futebol deixou de ser considerado de interesse generalizado do público.

Perante um pedido de esclarecimento apresentado ao governo pelo PS, o ministro Relvas apressou-se, em tempo recorde e com a resposta na ponta da língua, a “esclarecer” as razões pela quase total eliminação do futebol daquela lista: a decisão foi tomada “com o único objectivo de beneficiar o interesse dos contribuintes”! E isto porque a RTP gastou, entre 2004/2005 e 2013/2014, mais de 109 milhões de euros em futebol (jogos da selecção A e da Taça de Portugal, que se mantêm na lista, incluídos). Analisando os números, tal como veiculados pelo “Público” na edição de 11.11, 36,6 milhões de euros terão sido gastos em jogos da 1.ª Liga, 35,5 milhões das selecções, 5,7 milhões da Taça de Portugal, 1,6 milhões da Taça da Liga e 28,6 milhões da Liga dos Campeões. O que não disse, naturalmente, é quanto a RTP encaixou em publicidade e, já agora, em notoriedade com as transmissões referidas.

Hoje, no Parlamento, voltou a dizer: “o que considerei de relevante interesse público[sic] é a passagem em canal aberto público dos jogos da seleção nacional [de futebol] e mesmo assim é um investimento muito significativo”. E acrescentou, sapiente, que “quem no passado assinou despachos de interesse de serviço público” (sic) «o fez com a atitude de saber que não o ia cumprir» (sic!), não se coibindo de, a título de exemplo (e com esta, é mesmo enjôo!), recordar que quem transmitiu na época de 2011-2012 os jogos da Primeira Liga em sinal aberto foi uma televisão privada, a TVI.

Só que, para infelicidade do bom aluno e como resulta do que aqui se começou por dizer, o dinheiro gasto pela RTP em futebol e o serviço público de televisão não têm rigorosamente nada a ver com a lista de acontecimentos de interesse generalizado do público em questão! Além disso, não obstante a definição dos montantes a adscrever ao serviço público competir ao Estado – no quadro da lei, que não está a ser cumprida, e do contrato de concessão -, o ministro parece continuar a desconhecer que a RTP tem autonomia de gestão e editorial, não lhe competindo avulsamente determinar se a RTP deve ou não passar futebol e, ainda por cima, que jogos pode ou não transmitir…

A RTP, como a SIC e a TVI, potenciais destinatários da lista, nunca foi obrigada a comprar os direitos de transmissão dos jogos nela previstos. A lista apenas impedia que as Sport TV deste mundo se arrogassem o direito de exigir fortunas pelos jogos de futebol que suscitam maior interesse na sociedade, permitindo às televisões em aberto disponibilizá-los a toda a população, e não fazê-los privilégio da Sport TV e de quem tem dinheiro para a subscrever. E agora já não impede: eliminados os jogos de futebol da lista, a Sport TV pedirá o que quiser aos operadores em aberto, a começar pela adquirente dos jogos da época de 2011/2012, a TVI.

Esclarecido o mistério e identificado o verdadeiro beneficiário da medida, resta perguntar ao ministro paladino do contribuinte o que vai efectivamente fazer, em época de aprovação do orçamento do Estado, em prol do seu protegido. Ou se a sua benemerência fiscal ficou vesgamente esgotada na lista que, contra o parecer da ERC, aprovou.

João Pedro Figueiredo

Comments

  1. maria celeste d'oliveira ramos says:

    Poupem-me com a visão desde anormal – há visões que me faze mal

    • jpfigueiredo says:

      Maria Celeste, refere-se ao ministro, suponho… Eu não diria anormal, mas lá que não acerta uma… Os factos são sucessivos e aparentemente inesgotáveis… Ele e a equipa que o aconselha deveriam ter vergonha na cara pela repetida incompetência que não deixam de manifestar.

  2. maria celeste d'oliveira ramos says:

    Tens razão – falei do ministro mas não é patético – é demente com cara de demente – é tempo de demência – no mundo – esta segunda década do milénio III – é em reveladora – Lisboa está cheia delixo – os almairas recusaram aho em imitar “Nápoles” que com a greve chegou ao inferno – não sei se os transportadores andam a exagerar em greves – acho que se deviam fazer tabelas de ordenados comparativos pois creio bem que a desigualdade é quese imoral relativamente a certas classes socio-trabalhadoras quem nunca tem direitos são os funcionários públicos – não posso falar do que não sei -mas quando os pillotos da TAP por exemplo afazem greve fico com ataques de raiva pois os priveligiados são atrevidos, demasiado

  3. Alex says:

    É costume dizer-se que não se devem «dar pérolas a porcos». Não querendo elevar nenhum governante à excelsa qualidade dos nossos simpáticos suínos, com quem me apraz amiúde confraternizar nalgumas «churrascadas», seria bom tornar mais consequente as exigências de cumprimento do contrato de SPTV, de modo a que o público interessado – uma vastíssima audiência, estou certo – pudesse usufruir do acesso ‘free-to-air’ aos acontecimentos de elevado interesse do público. Designadamente, os desportivos. Concretamente, «o pontapé na bola» .A invocação dos exemplos europeus neste domínio poderia, salvo melhor opinião, ser eficazmente exibida por quem faz oposição ‘in loco’, para evidenciar o anacronismo social e cultural que resulta, para além do esbulho económico que prefigura, do resultado das inebnarráveis decisão de uma aberração em representação do executivo – nesta como noutras questões -, cuja actuação tem evidenciado parecer tender para previlégio e benefício de certos sectores. Ou do próprio e ‘amici’. Ava

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