Deve estar dado como demodé ter um café, esses simpáticos estabelecimentos que em séculos mudaram o mundo. Como por aqui já narrei ainda sou cliente principalmente de um, o mui distinto Café S. Cruz que hoje perfaz 90 anitos, coisa pouca, o edifício vai a caminho dos 500 e é monumento nacional.
Em tempos idos, perante a necessidade de escolher um edifício quinhentista para um trabalho académico, e andando com pouca vontade de defrontar as eternas dificuldades de uma igreja aberta ao culto, locais onde nunca foi consumidor, optei por este, complicado, fui avisado por quem sabia e mais sabe do assunto, mas até eu olhando muitas vezes para as mesmas paredes consigo encontrar qualquer coisa que justifique a nota. Não me dei mal. Mais tarde, e porque gosto pouco da ciência em circuito fechado, cravei uns amigos e chegámos à um livrito, a ideia era tê-lo ali à disposição dos visitantes que chegam, dizem Ah! isto parece uma igreja, e foi mesmo.
A coisa correu mal, a vereação da câmara achou que o café que a serve (e é propriedade do município) não valia uns tostões investidos em livros (investidos, a proposta foi que garantissem a compra de alguns exemplares da brochura, baratucha, oferecem coisa bem piores quando recebem alguém), e ficou o ficheiro.
Hoje é um bom dia para oferecer o texto a quem o queira ler. Teria uns acrescentos para lhe colocar mas fica assim, como estava em 1999. Detalhes técnicos à parte a história tem a sua graça, e continua deturpada por aí, a começar pela página oficial dos monumentos, já foram avisados há muito tempo, sem efeito.
O Santa Cruz: de igreja paroquial a café de Coimbra
A freguesia de Santa Cruz foi criada em 1137. E provavelmente logo nessa data se começou a construir a «capela S.cti Iohannis» no lado norte da igreja do Mosteiro de Santa Cruz. E, por outro lado, «logo depois da Fundação do Mosteiro de Santa Cruz, vendo S. Teotonio que algumas virtuosas senhoras se enclausuraram junto do convento, intentando imitar os fundadores do seu santo viver, alcançou suplemento do papa Inocêncio II e fundou-lhes mosteiro próprio que se chamou Mosteiro de S. João das Donas enclaustradas, ou canónicas reclusas de Santa Cruz».
No início do séc. XVI os paroquianos frequentavam sobretudo o Mosteiro, mas também o templo paroquial conhecido por igreja de S. João das Donas, já que acumulava essa função com a de capela das monjas.
A reforma manuelina do edifício tentou uma melhor acomodação para estas freiras. Pensou-se mesmo em passar o exercício paroquial para a Capela dos Mártires, a sul da igreja principal.
Após vinda a Coimbra de D. João III, em 1527, a reforma do Mosteiro e a instalação da Universidade vão alterar profundamente a cidade. De S. Cruz foi nomeado reformador Fr. Brás de Braga (que o rei provavelmente conhecia desde a juventude), e que partira em 1517 para estudar em Paris, completando a sua formação na Universidade de Lovaina, onde se graduou em Teologia, tendo em 1525 regressado a Portugal para ocupar o cargo de prior do Mosteiro da Serra de Sintra.
Para lá da moralização e autoridade que se pretendia impor entre os crúzios, a missão de Fr. Brás passava pela reestruturação das dependências conventuais, modernizando e construindo edifícios.
Extinto o pequeno convento de São João das Donas, restaurada a igreja de Santa Cruz à dignidade de panteão dos primeiros monarcas, seria de toda a conveniência reservar esta para uso quotidiano e exclusivo dos frades crúzios. Para tal era necessário construir de raiz uma igreja paroquial que servisse a freguesia de S. João de Santa Cruz. Frei Brás de Braga mandou-a erguer cerca de 1530: «Fez mais a igreja nova de São João da outra parte da igreja do dito Mosteiro que tem a capela de abóbada com seu arco e um portal para a sacristia, e o portal principal da dita igreja com três frestas em cima» – assim nos narra a crónica da obra do frade reformador.
É unânime a atribuição deste edifício a Diogo de Castilho, quer por afinidades estilísticas com outras obras documentadas, quer pelo facto de se encontrar ao tempo em Coimbra, dirigindo outros trabalhos. Documentalmente, D. José de Cristo retira qualquer dúvida ao escrever sobre este arquitecto e empreiteiro: «Também fez a igreja de S. João freguesia de S. Cruz».
Natural da Junta de Cudeo, da então comarca da Biscaia, aparece junto do irmão, João de Castilho, em 1517, como oficial de empreitada no Mosteiro dos Jerónimos. Em 1518, em Coimbra, serve de testemunha num contrato, onde o tratam como «mestre de pedraria». Casou no Porto com Isabel de Ilharco, mas será em Coimbra que se instalará: é nomeado mestre dos paços reais em 1524, por carta régia de 1531 investido no cargo de mestre das obras de pedraria e alvenaria do Mosteiro de Santa Cruz, e a partir de 1547 mestre das obras da Universidade. A ele se refere Lurdes Craveiro como um «cidadão reconhecido, ligado às instituições do poder em Coimbra, com contacto com o rei e a corte», um homem que «vai usufruir de excelente posição para demonstrar uma cultura arquitectónica de poder numa cidade que aspirava à projecção do saber».
Mas é conveniente entendermos este fazer: entre 1525 e 1535 trabalharam nas obras do Mosteiro de S. Cruz pelo menos 47 pedreiros. Por esta época, embora nem sempre em simultâneo, o irmão mais novo de João de Castilho assegura diversas empreitadas: para lá do refeitório e do coro alto do Mosteiro crúzio (e que juntamente com a nova igreja de S. João podemos considerar do mesmo empreendimento), conhece-se o seu trabalho em São Marcos, Góis, Trofa do Vouga, Atalaia, Ega e a capela dos Carneiros na igreja de São Francisco do Porto. Certamente, nas empreitadas que ia ganhando, contratava e subcontratava muitos pedreiros e lavrantes, cuidando do andamento das obras conforme a sua disponibilidade, e estabelecendo acordos de parceria em alguns casos.
Conhecemos várias parcerias com João de Ruão, que na cidade se instalou, e já em 1530 era referido como «amigo e servidor» do mosteiro, onde «muitas e boas obras» executara. Participou seguramente nesta grande empreitada, e pode ter intervido na arquitectura decorativa da nova igreja de S. João, ou nas esculturas de pedra que nela existiram, e cujo destino desconhecemos.
Um dos artistas estrangeiros que à época procuraram trabalho em Coimbra, Jacques Luchim, imaginário (homem cuja obra, a despeito de algumas especulações, no essencial desconhecemos), a 21 de Outubro de 1559 «se finou (…) e jaz em São João debaixo de uma campa grande junto á pia de água benta». João de Ruão, cujo óbito a 28 de Janeiro de 1580 se encontra registado no Livro dos Defuntos da Freguesia de S. João de S. Cruz, também terá, eventualmente, sido enterrado nesta igreja, ou em seu adro.
A abóbada da igreja reparte-se em dois tramos, dividindo-se a do café em três. Isto porque o primeiro, estreito, de nervuras mais finas, em betão, resulta da reforma do edifício em 1923, quando foi adaptado às suas actuais funções. Separadas por um largo arco circular seguem-se as abóbadas principais, de desenho semelhante e formando ambas quase um quadrado.
O piso actual encontra-se perto de dois metros acima do primitivo, o que nos faz perder a volumetria do salão.
Quatro capelas de arcos semi-circulares, renascentistas, devem ter existido nos lados da abóbada central. Restam duas, do lado da capela-mor. Outras estruturas decorativas de carácter renascença em obras coevas (S. Marcos, Góis, Trofa do Vouga) permitem-nos admitir a hipótese de que foram erigidas de raiz. Não nos deverá espantar a coexistência de estruturas góticas (a abóbada) com elementos modernos: tal reflecte apenas a forma como se introduziu a renascença na arquitectura portuguesa, primeiro através de elementos decorativos muitas vezes avulsos, simples cópia de gravuras ao que se foi tornando o gosto da época, e a que não seria estranho, neste caso, o gosto de Frei Brás de Braga, homem viajado e culto. Como Pedro Dias assinala, o próprio Diogo de Castilho «evoluiu, adaptando, naturalmente, o que era mais fácil – a decoração – não tendo, no entanto, tentado empreender uma obra totalmente moderna, antes de iniciar a segunda metade da década de trinta».
O arco cruzeiro, de moldura linear, confirma como na estrutura inicial se utilizaram já elementos decorativos renascentistas. A generalidade das mísulas e das chaves não obedecendo a um plano predefinido, nem sendo da lavra do mesmo artista, copiam modelos vistos pelos autores em outras construções, mas em alguns casos, mormente nos iconograficamente mais relevantes da capela-mor, denotam o conhecimento de gravuras e da simbólica cristã.
A abóbada da capela-mor, de planta quadrilátera, é em forma estrelada ligando os rosetões de união dos terceletes com as cadernas.
Bem cuidada é a iconografia utilizada. Intercalando com flores de lótus estilizadas, quatro chaves rodeiam o motivo central representando um cordeiro com cruz e flâmula rodeado por uma inscrição:
ecce ‘ ag’nvs ‘ dei quitolis ‘ pecata mvdit
em caracteres capitais bem desenhados, com estilete. Está ladeado a norte pelo sol e a sul pela lua, representações da luz e das trevas, sendo principalmente estas três chaves de boa qualidade. As mísulas repartem-se entre as representações demoníacas ao fundo (uma harpia e eventualmente um grifo) e a decoração com folhas de acanto estilizadas nas restantes. A sua semelhança com as mísulas do coro alto da vizinha igreja do Mosteiro é flagrante. De um modo geral nota-se a diferença na qualidade dos elementos decorativos, sintoma claro de diferentes autorias. Da capela-mor, presentemente, uma escada dá acesso a um armazém, ocupando a mesma superfície num piso inferior, que na realidade se aproxima da cota primitiva da igreja.
No que toca à fachada pouco sabemos: fez-se «o portal principal da dita igreja com três frestas em cima», é a descrição que dela nos resta. Nas gravuras mais antigas que nos chegaram já só encontramos uma reforma posterior. Temos por certo que, pelo menos parte do interior deste edifício, teve cobertura de azulejo, tendo alguns exemplares sido encontrados em 1921 e oferecidos para o então projectado Museu Machado de Castro, que os não pôde, ou quis, receber, sendo por isso incerto o seu destino. António Augusto Gonçalves declinou a oferta em 1921, «por que estando os quadros incompletos lhes faltar a terminação superior».
Com a extinção das ordens religiosas em 1834, a igreja do velho Mosteiro assume de novo a função de igreja paroquial. S. João Baptista de Santa Cruz ficará ao cuidado da Junta de Freguesia, que a arrenda o prédio como fonte de receita.
Desde 1866 que se encontra inscrito nos arquivos da direcção de Finanças «sob o numero de ordem quarenta e seis, (…) uma morada de casas que consta de três andares e lojas, um andar e loja». Numa outra descrição refere-se a sua divisão em «quatro compartimentos». Em 1892, por exemplo, foi registado um arrendamento a favor de Jorge da Silveira Morais, o qual se atrasou no pagamento das rendas…
Em breve os jornais recordarão as diversas funções a que esteve sujeita a igreja, após a sua dessacralização: «um armazém de ferragens, uma esquadra de polícia, armazém de canalizações, casa funerária, uma estação de bombeiros, uma relojoaria, e não sabemos se mais alguma coisa», segundo a Gazeta de Coimbra, ou noutra versão: «A tasca do Jurianta, a esquadra da polícia, uma estação de bombeiros com o seu teatro, um estabelecimento de canalizações, uma agência funerária».
«Deu ontem entrada na repartição de obras da Câmara Municipal o projecto da fachada do novo café a instalar na casa da Junta de Santa Cruz, à Praça 8 de Maio. O projecto, em estilo manuelino, é mais um magnífico trabalho do distinto arquitecto, Sr. Jaime Inacio dos Santos»
Esta local inserida na edição de 2/3/1921 do jornal A Notícia não faria prever uma arrastada polémica entre a opinião pública da cidade.
Numa Coimbra que progride, na expressão d’ A Notícia de 9/3/1921 (onde se relata estarem em projecto «A Brazileira», um restaurante ao arco de Almedina, e «negociando o proprietário de um dos cafés do Porto a instalação de uma sucursal nesta cidade»), a controvérsia iniciou-se quando o periódico monárquico Restauração criticou a construção «dum café-restaurante em estilo manuelino, junto da igreja de Santa Cruz» chegando a sugerir: «se de facto a câmara consentir nesse atentado – propomos que, sem perda de tempo, se construa em frente do café chic – um mictório renascença.».
De um lado vão estar monárquicos (Restauração, e em Lisboa A Época), do outro os periódicos republicanos (A Notícia, A Gazeta de Coimbra, O Despertar, etc.). Contra a construção se ergueram, sobretudo, o arquitecto Silva Pinto e Abel Urbano, presidente do Conselho de Arte e Arqueologia da 2ª circunscrição.
Tinha-se acabado de digerir, e mal, outra polémica: a da tentativa de demolição da porta da barbacã junto ao Arco de Almedina. E havia na cidade uma facção que em nome do progresso defendia a demolição do próprio Arco de Almedina.
O governo decide considerar monumento nacional a «Igreja de S. João das Donas». Os jornais republicanos aprestam-se a mostrar, pela voz dos eruditos, que tal construção esteve a norte do Mosteiro, onde hoje se encontra a Câmara Municipal, e que tal nada tem a ver com a igreja de São João de Santa Cruz. O facto de, entretanto, nas obras de desentulhamento se ter encontrado uma porta de ligação ao Mosteiro, leva ao boato e à hilaridade geral, vendo-se os jacobinos republicanos, perante o embaraço dos talassas, no papel de explicar que tal não se devia a qualquer promiscuidade entre as Donas e os monges, mas a uma governamental confusão entre igreja paroquial e igreja conventual, das Donas, a qual de resto ainda hoje se mantém.
Tudo se resolve com a alteração do projecto da fachada. Consensualmente esta é despida dos toques decorativos «manuelinos», adoptando um tom de revivalismo entre a renascença e mesmo um certo romanicismo.
«As modificações a realizar, são somente nas cordas, nos balões, etc. de modo a não dar o aspecto manuelino que dessa ornamentação poderia resultar», refere A Notícia a 17/12/1921, para poucos dias depois rematar:
«Afinal no caso do café de Santa Cruz, tudo se reduziu a serem retiradas do projecto, para não parecer manuelino, umas bóias e umas cordas.
– É claro que o Conselho de Arte, parecendo que não manda retirar as cordas mas com-corda…»
«A inauguração no próximo dia 8 de Maio, do luxuoso Café-Restaurante de Santa Cruz» acrescida da próxima abertura das «novas e distintas instalações da pastelaria Central (…) serão acontecimentos retumbantes para a vida moderna e sempre progressiva de Coimbra», garante a Gazeta de Coimbra de 28/4/1923.
«A instalação, é na verdade, digna de apreço. Augusto Monteiro e seu filho José, emprestaram-lhe todo o seu inteligente saber de construtores; os irmãos Almeidas, da Cerâmica, e Afonso Pessoa, realizaram aquela linda obra dos vitrais (…). Ainda a empreza proprietaria adquiriu um serviço de mesa e café interessante», congratula-se A Notícia de 24/5/1923.
Embora tenha havido uma pré-inauguração, três dias antes, com um jantar do Curso Teológico-Jurídico de 1902/03, seria a 8 de Maio, data que dá nome à praça onde se situa, e memória à entrada dos liberais em Coimbra, que no ano de 1923 a inauguração finalmente terá lugar.
A Gazeta de Coimbra anunciava o evento, esperando a afluência da «melhor sociedade citadina, que por certo, ali virá dar-se rendez-vous hoje e sempre».
Brevemente, o Maestro Magliano e seu quinteto irão abrilhantar os jantares concertos das Quintas e Domingos.
As 125 (126 a partir da minha, já a seguir) dizem bem da importância de teres publicado este post. Vou reler, é sempre bom aprender.
As 125 partilhas no facebook…