Um plano para salvar a vida

Foi-se-nos mais um, outra está prestes a ir. Há os que ainda andam em busca de destino, qualquer um, já não como fazíamos em miúdos, com os dedos a correr o globo e a adivinhar nos nomes exóticos promessas de aventuras, mas à procura do possível, do menos mau, dos mil e tal euros, contrato, um mínimo de dignidade. Andamos todos a perder amigos, colegas, conhecidos. Todos os meses alguém nos conta que vai deixar o país, que aguentou enquanto pôde mas enfim deixou de poder. E de cada vez que nos despedimos perguntamo-nos se nos tocará fazer o mesmo, até quando poderemos resistir à derrocada da nossa casa.

Fazem-nos falta todos os que emigraram, como fazem falta os vizinhos que entregaram a casa, as lojas que fecharam no bairro. Faz-nos falta a rede de nomes, rostos, histórias de que se compõe a nossa vida de todos os dias, a que nos faz sentir estruturados, com chão debaixo dos pés. Faz-nos falta sentir que temos um futuro, que podemos lançar sementes para daqui a um ano, a dez, a trinta, e que o mundo, com tudo o que há-de lançar-nos de inesperado, não deixará de ter lugar para nós e para a vida que construirmos.

Perdemos futuro, perdemos a nossa vida a longo prazo, e no seu lugar há uma névoa branca e densa: onde estarei daqui a dez anos, em que situação, terei trabalho, terei saúde, o meu país terá escolas, hospitais, teremos um tecto, comida? E ou se vive nessa angústia perpétua ou se encolhe os ombros e se desiste de futurizar, aceita-se um dia a seguir a outro, logo se vê, havemos de caminhar como sonâmbulos em direcção a qualquer coisa que ainda há-de aparecer na curva da estrada, se é que haverá curva, se é que haverá estrada.

Mas é quando nos despedimos de mais alguém, e retomamos o caminho de olhos no chão, outra vez a chutar pedras como miúdos frustrados, que devemos perguntar-nos: Em que momento foi, quando é que desistimos de ter futuro?

Não fomos vítimas de uma catástrofe natural, não nos lançámos em nenhuma guerra, não fomos atingidos por meteoritos. Antes aceitámos ser governados por quadrilhas que legitimam a pilhagem dos recursos que deveriam estar ao serviço das pessoas  – eu sei, “pessoas” é hoje um conceito antiquado, entretanto substituído por eleitor, consumidor, contribuinte – e que debitam a ladainha da austeridade, como quem nos atira baldes de areia para os olhos e a seguir nos pede que a esfreguemos com força, sem parar.

E por isso dá mais raiva perder gente, e mais ainda ouvir os hipócritas que o dão como inevitável, quem sabe benéfico, ou os oportunistas que tudo reduzem ao seu deve-e-haver e que aceitarão qualquer coisa se acreditarem que lhes trará algum benefício e que os atingidos continuarão a ser os outros.

Digo que quero de volta todos os que saíram sem vontade e quero de volta o futuro que nos andam a roubar em tranches cada vez mais gordas. E não há nada de utópico nisto, nem vestígio de romantismo. O plano que ia salvar-nos já matou vários de nós. Precisamos de um plano para salvar a vida e precisamos dele já.

Comments

  1. roma says:

    Chorei ao ler o seu texto. Chorei pelos meus filhos e neto e chorei por este país que, apesar de tudo, amamos.
    Tudo de bom Carla Romualdo.


  2. O que eu seria capaz de dar para ter esta sensibilidade quase telúrica, que vem da alma magoada, porque as pessoas vão, esvaziando-nos, mostrando-nos a frieza de uma sociedade que hipotecou valores como a solidariedade.
    Não, não é inveja, é humildade!


  3. Lindo texto. Obrigado, Tão bom.