O País dos Doutores:

Hoje dei de caras com um cartaz da CDU na minha freguesia cujo nome da candidata surgia da seguinte forma: “Dr.ª. fulana de tal”. Olhei segunda e terceira vez e imediatamente pensei: “está dado o mote para a minha próxima posta no Aventar”.

O meu Pai, farmacêutico de formação e profissão, tinha por hábito advertir algumas pessoas que o interpelavam por “Senhor Doutor” do facto de não ser esse o seu nome de baptismo. Logo de seguida, ironicamente, explicava o processo de baptismo, etc e tal. Foi com ele que aprendi a não gostar dessa “cagança” tão portuguesa. Mais tarde, quando a idade começou a avançar, comecei a ser tratado em determinados locais pelo mesmo “Senhor Doutor” e lá começava eu a explicar que não era, que não tinha ainda acabado o curso e mesmo que o tivesse, etc e tal. Ao ponto de ter deixado de ser cliente de um determinado restaurante da Maia por causa disso – o fulano, dono do dito, começou a tratar-me por doutor, após lhe dizer que não o era, passei a ser engenheiro e a seguir, arquitecto! Após terminar a licenciatura, começou novamente o massacre. Numa primeira fase expliquei que “Doutor” era o meu médico, depois anunciei que não passava receitas e, por fim, desisti tendo como resultado começar a ficar farto.

Neste país de “doutores” e muito respeitinho, a maralha péla-se por ser tratada pelo “Dr.” e nem vos digo a quantidade de vezes que recebo mails, sobretudo de trabalho, cuja assinatura surge como “fulano de tal, Dr.”, assim mesmo, sem tirar nem pôr, pondo a nu os complexos de inferioridade que habitam no mais estranho dos seres. Mais engraçado e cómico é verificar o deleite de certos não licenciados quando tratados por “Dr.”. Não desmentem a coisa, antes pelo contrário, mesmo quando na presença de conhecedores de tal lapso. Recentemente, numa reunião, assisti a uma cena do género. O sujeito da referência impávido e sereno, até engrossou um pouco a voz adaptando-a ao que julga ser o timbre mais correcto para a qualidade em causa. Após a dita, em pleno elevador, o autor do lapso virou-se para mim, afirmando: “eu sei que o tipo não é doutor mas foi pelo prazer de o ver todo emproado e pelo gozo do caricato da situação”. Nem pestanejei tal a surpresa.

Neste país da “cagança com toda a pujança” já espero tudo mas confesso a minha surpresa ao ver num cartaz da CDU, do partido auto-intitulado “do Povo”, a referência ao título académico. O que diria o saudoso “Zé Barbeiro”, o verdadeiro comunista da Areosa, ao ver uma camarada sua tão preocupada em passar receitas…

Comments

  1. Disseram-me, mas não consegui apurar, que esse lusitano hábito começou com Sidónio Pais. Durante o seu berve consulado (1917-1918) substituiu um aumento aos quadros superiores da função pública (que tinha prometido, mas não cumpriu), pela imposição de os licenciados passarem a ser designados por doutores. Como disse, não pude averiguar da veracidade desta informação. Porém, vendo escritos anteriores, vejo que nem Eça, nem Antero, nem Guerra Junqueiro, por exemplo, todos eles bacharéis (como na altura se chamava aos que completavam a licenciatura), eram tratados por doutores. Até nos parece ridículo dizer o Dr. Antero de Quental. Nessa altura, só gente doutorada e os médicos, por tradição, tinham esse tratamento. Nestes últimos cem anos, há coisas em que regredimos. Esse hábito disparatado é um deles. Dizem que nos corredores da União Europeia circula uma recomendação: «Se adoeceres em Portugal não procures um doutor – podes vir a ser tratado por um economista!».

  2. A propósito, veja-se o que diz o Professor Raúl Iturra sobre esse costume disparatado no seu post sobre o Presidente Allende.

  3. Adão Cruz says:

    Totalmente de acordo. É uma paneleirice que há muito devia ter desaparecido. E o contrário é um sinal de superioridade e inteligência, que já acontece maioritariamente em Espanha, por exemplo, na minha área. Eu tenho dois filhos licenciados que não ligam puto a isso, e parece que o Dr. só aparece na conta bancária, onde consta a profissão. Mas pior ainda, são os licenciados de aviário, os de canudo comprado na loja dos chineses. Esses, e compreende-se que assim seja, são os que mais exigem esta clara designação da burrice.

  4. Adão Cruz says:

    E agora com as “Novas Oportunidades” é que vai ser! Doutores às ninhadas!

  5. Adão Cruz says:

    Claro que sendo da CDU, facto raro, penso eu, a situação é mais penosa e caricata. Em princípio, deveria haver alguém que chamasse a atenção a essa senhora ou aos responsáveis pelo cartaz.

  6. Como sou da cidade onde basta não ser pobre para se ser doutor, nem imaginam o que passei, até me habituar. Em contrapartida, numa parede da Fac. de Medicina, esteve durante muitos anos escrito: “não digas sr. doutor, diz filhodaputa”, e pensando bem no assunto é nisso que pensa o velho futrica, entre as vénias e salamaleques que a tradição lhe impõe. Até porque futrica também é, vindo da boca de doutor, sinónimo de filhodaputa.

  7. isac says:

    é bem verdade. Quando trabalhei no Primeiro de Janeiro, sempre que era para resolver casos bicudos de erros nas edições, era sempre apresentado como Engenheiro… e funcionava!!! era sempre tratado de forma muito cordial e educada, comparando com as vezes que me apresentavam apenas como paginador…

  8. Luis Moreira says:

    Quando formos todos doutores e engenheiros isso acaba.

  9. isac says:

    Já não é possível isso. Aquela universidade que vende “canudos” aos Domingos parece que fechou.

  10. Luis Moreira says:

    Má política. Há que abrir mais. Outra forma de acabar com isso é chamar doutor a toda a gente. O brazuca já faz isso…

  11. Carlos Loures says:

    Não, Luís. No Brasil só é doutor quem usar gravata. Não exageremos!

  12. maria monteiro says:

    Usar gravata, uma pasta à maneira e um carro que encha o olho dos vizinhos… é assim que se faz um doutor. Como o título se alarga lá temos a esposa também doutora na sua melhor forma.As pessoas são aquilo que valem e não aquilo que apresentam valer…. quanto ao cartaz provavelmente a senhora quer dizer que também os doutores comem criancinhas ao pequeno-almoço : – )

  13. Rui Manuel da Cruz Mira says:

    Eu estive emigrado no brasil durante algum tempo e sou licenciado em serviço social, nunca me chamaram de Dr por causa da minha licenciatura tratavam-me ou pelo meu nome Sr Rui ou pelo meu curso sr A.S. E aré me diziam que gostavam de tratar os portugueses por doutores porque davam boas grojas embora saberem que não eram.
    é como aqui em portugal trabalho atualmente num a camara municipal onde todos os licenciados são tratados por Dr, como eu não estou na categoria de técnico superior chamam apenas Rui.
    aqui qualquer cagalhão e á vezes com cursos tirados na farinha Amparo é tratado por DR.

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