A máquina do tempo: Nazim Hikmet

 

 

Em 1943, em plena Guerra Mundial, um jovem investigador turco chegou a uma aldeia isolada numa região montanhosa e descobriu que as canções de um grande poeta que ali recolheu, as quais «enterneciam as mais altas montanhas e os mais duros rochedos», supostamente um poeta popular muito antigo, eram afinal de um poeta contemporâneo. No entanto, os camponeses afirmavam que já seus pais e avós sabiam aquelas poesias. Como podia ser? Sem jornais, sem rádio, com a povoação mais próxima a 14 horas de marcha, como chegaram os versos de Hikmet a tão recôndito lugar e se instalaram de maneira tão profunda entre os hábitos ancestrais dos aldeãos?

 

Nazim Hikmet Ran nasceu em 20 de Novembro de 1901 e morreu em 3 de Junho de 1963. Foi o mais importante poeta turco do século XX. Nasceu em Salónica, na altura integrada no Império Otomano, e foi membro do TKP (Partido Comunista da Turquia), sendo desde muito jovem perseguido pela polícia do sultão. Entre 1922 e 1925, esteve exilado na União Soviética, completando os seus estudos em Moscovo. O advento da Revolução turca de Mustafa Kemal Atatürk, em 1923, não melhorou a situação do poeta, mantendo-lhe a condição de proscrito. Só este ano (5 de Janeiro de 2009), quase 46 anos após a sua morte, o governo de Ancara aboliu por decreto a decisão que em 1951 retirou a nacionalidade turca ao grande poeta.

Mas voltemos a 1943 e ao trabalho do folclorista universitário.

A aldeia a que o jovem investigador acabava de chegar, era um aglomerado de quarenta casebres, com tectos de terra batida. Os aldeãos viviam em condições de extrema pobreza. Como já disse, a povoação mais próxima ficava a 14 horas de marcha, por acessos difíceis, estreitos carreiros talhados no flanco das rochas. Na aldeia, uma rapariga disse saber «belas canções de um grande poeta, com força para «enternecer as mais altas montanhas e os mais duros rochedos». E a jovem começou a recitar versos que o investigador se apressou a anotar no seu bloco de apontamentos.

Ao cabo de momentos, foi tomado de uma grande surpresa – os poemas que a camponesa sabia de cor, eram versos de Nazim Hikmet. – Quem foi o poeta que compôs estas canções? – perguntou aos aldeãos. – «Foi um grande poeta» – responderam -«Os seus versos são mil vezes por nós repetidos. Os nossos pais e os nossos avós já os cantavam também. Vieram-nos dos nossos antepassados. Como podemos saber quem os escreveu?»

O jovem investigador ficou estupefacto. Como era possível que os poemas de Nazim Hikmet, escritos poucos anos antes, tivessem podido chegar até àquela longínqua aldeia da Turquia asiática e enraizar-se no coração dos seus habitantes, misturando-se com as odes dos bardos tradicionais da Turquia – o legendário Korkout e o sublime Younous? Um dos poemas recitados pela jovem aldeã tinha sido escrito escassos anos antes numa cela da prisão de Brousse. Como era possível Hikmet misturar a sua voz com as obras dos velhos cancioneiros populares?

Voltou por diversas vezes à aldeia para tentar decifrar o enigma, mas recebeu sempre a mesma resposta: «- É um grande poeta, um grande homem. Recebemos os seus versos dos nossos pais, que os receberam dos seus pais…» Nunca conseguiu descobrir como os poemas de Hikmet viajaram até àquela aldeia e se incrustaram entre a poesia ancestral.

Devo acrescentar que a modernização da língua turca muito deve a Hikmet. Os grandes mestres estavam mergulhados num total esquecimento. Ninguém descobrira que o turco podia ser uma linguagem poética, literária no melhor sentido e, ao mesmo tempo, terna e vigorosa. Foi Hikmet que lhe conferiu essa característica ao abandonar cânones empolados, só entendidos por eruditos, e ao adoptar a linguagem do povo, vinculada à sua realidade quotidiana, ao trabalho, à rudeza da vida.

O poeta em particular, e o escritor em geral, têm de estar no cerne da vida. Hikmet compreendeu isso e rapidamente ganhou um lugar no coração do seu povo, lugar mais importante do que mil cadeiras de academias. Como um subtil, mas impetuoso, lençol subterrâneo de água, impregnou a alma do povo turco. Esta a única explicação para o folclorista surpreendido, sem compreender como é que aquela gente ignorante, analfabeta na sua maioria, recitava poemas que estavam proibidos. Por aqueles anos 40, a posse de um texto de Hikmet dava direito a uma pena de cinco a dez anos de prisão, a sevícias e a tortura.

Numa outra escala, numa outra realidade, apesar de tudo menos dramática, não foi isto que se passou em Portugal com as canções de José Afonso? Muitas pessoas sem cultura ou consciência política cantavam as suas canções e recitavam os seus versos. Por exemplo, a sua canção sobre Catarina Eufémia valeu por milhões de panfletos e jornais clandestinos. Quantas mulheres, entre os 30 e os 40 anos, se chamam hoje Catarina? Homenagem, em muitos casos inconsciente, de seus pais ou padrinhos à ceifeira assassinada no Baleizão.

Nem a repressão policial, nem os elitistas preconceitos intelectuais, conseguem fechar o coração de um povo à poesia, à música, à arte com que a sua alma se identificar. Muito daquilo do que  hoje se celebra como grande literatura, por exemplo, morrerá logo que se extingam os temporais conceitos que servem de pedestal a essa suposta grandeza. Só sobreviverá o que for genuíno e intemporal. Foi assim com Nazim Hikmet. E, entre nós, Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões, Fernando Pessoa, não terão, também eles, descoberto a subtil chave para os nossos corações? Será por isso que perduram? Acho que sim.

 

 

 

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