presentes de natal:ofertas ou coima social?

a rosa da dádiva

a rosa da dádiva

Um minuto antes de começar este ensaio, acabei um livro sobre o grupo doméstico. O livro nasceu de uma conferência proferida em Alicante, no IV Congresso de Antropologia de Espanha. Como eram 25 páginas, com imensas citações, fiz de cada citação um texto, com imagens, comentários e definições. Um livro de texto. O livro foi-se escrevendo: é um livro de texto para os meus discentes, o meu presente de Natal. Foi escrito com imagens das etnias que estudamos, fotos dos pais fundadores da nossa ciência, comentários sobre a sua vida pessoal e, como gosto de dizer, outras ervas para criar uma obra com amor nos tempos de cólera. De cólera doença, não de cólera sentimento. Enquanto escrevia, como é época de Natal, fui pensando nos presentes oferecidos, nos recebidos e no silêncio da minha casa antigamente cheia de barulho na quadra natalícia. Quer a dos meus pais, quando éramos adolescentes ou púberes, quer, quando formámos a nossa própria família, quer ainda, na minha casa de hoje, ninho vazio dos passarinhos feitos por nós, enquanto eles fazem os seus próprios e os criam.

Apareceu na minha cabeça esta ideia que o sábio Maori Tamati Rainipiri,

sábio maori Tamati Rainipiri

sábio maori Tamati Rainipiri

explicara a um discípulo de Mauss, o criador do conceito reciprocidade como oferecer – aceitar – devolver, em conjunto, reciprocar. Pensamos sempre em reciprocidade como troca mútua ou compensação.

Consciente estou de ter escrito um texto, neste sítio, sobre reciprocidade. Tive que definir. Não preciso neste dia de o fazer, o saber é cumulativo. É suficiente procurar Iturra na data de onze de Novembro de este ano que finda e as definições lá estão.

Hoje, não penso nesse tipo de reciprocidade. A casa está vazia, poucos presentes entraram, vários saíram. Nasceu na minha cabeça a ideia se as prendas de natal eram ofertas ou coimas. Uma coima (se é social), não no sentido de multa paga por cometer uma falta ou pena pecuniária em caso de transgressão, mas sim, na compra de favores a outra pessoa, por nos serem necessárias as suas actuações. Por outras palavras, é exprimir um sentimento de amor, ou pagar com antecipação um favor que se espera da pessoa que tem poder.

Quem tem poder? Defino-o como pessoa que tem capacidade de resolver um imbróglio do qual é preciso sair para triunfar. Que tem essa força, recebe presentes. De quem precisamos, oferecemos, como no caso que nunca esquecerei: uma pessoa, minha doutoranda, quis dar-me para o Natal um relógio de pulseira automático: precisava de acabar a sua tese, o prazo era curto e reparava nos meus esforços para a ajudar a acabar. Pareceu-me natural não aceitar o presente até ao dia de se doutorar. Mal acontecera, levou-me a almoçar num sítio calmo, passou para as minhas mãos um pequeno pacote: o relógio estava dentro. Aceitei, mas, em troca, paguei o almoço.

coima

coima

Fiz mal? Penso que não. Orientar é uma parte dos deveres académicos pelos quais somos pagos. Ou esse outro presente, útil para mim, uma pen. Ao pensar nesse aparelho informático, começo a duvidar se o presente de Natal é carinho ou um extra pagamento pelo esforço extra de colaborar. Se pensarmos nos médicos, são as pessoas que recebem mais presentes na quadra natalícia, ou os advogados, ou os juízes que ditam sentença porque a lei assim o manda. Quem tem mais poder, recebe mais presentes. Quem teve poder e o cessa um dia, passa a morto vivo, zombie a entreter-se com a escrita, a leitura ou com o passeio (só) pelas ruas. Eventualmente, presentes de mimo por se esperar carinho da outra pessoa.

Amargo? Apenas uma reflexão. É preciso redefinir esse conceito: eu não dou para ser presenteado. Eu dou porque amo e agradeço o que por mim fazem. Se recebo, aceito por haver paixão detrás desse presente, ou uma imensa gratidão a quem faz tudo por nós, sem nada esperar em troca. Se o presente aparece, agradeço e, ou guardo ou devolvo. Vezes sem fim, agi dessa maneira.

Hoje em dia não preciso. A solidão entrou na minha alma. Habituei-me a ela.

o pai fundador da antropologia

o pai fundador da antropologia

Marcel Mauss era um patriota e campeão da entrega. Sem ele, Durkheim não teria escrito esses textos, Lenine não teria derrubado um império, Lévi-Strauss não teria escrito a sua teoria, decalcada das ideias de Mauss.

O presente obriga-nos. Como diz Tamati Rainipiri ou define Malinowski e o sector ritual das Igrejas: há um mana, há uma áurea nas outras pessoas que nos leva a respeitar.

a reciprocidade que todos desejam

a reciprocidade que todos desejam

Talvez tenha que pensar mais para sentir que o presente é uma oferta, que se aceita em silêncio e com devoção é paga. Dou, nada espero, recebo, calo. Eis a reciprocidade. Eis a prenda de Natal. Não é coima, é presente que com amor, uma emoção alegre, é paga.

melhor pressente: passeio pela natureza com a pessoa que acompanha

melhor pressente: passeio pela natureza com a pessoa que acompanha

O melhor pressente: passeio pelas cores da natureza e confiança na pessoa que nos acompanha

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Gosto de oferecer presentes, não gosto de receber. E não é só no Natal…

  2. maria monteiro says:

    Prof Raul, daqui lhe envio um abraço amigo em forma de presente que aconchega a solidão da alma.

    O maior presente é o presente que diariamente se transforma em escrita aqui no Aventar. Grata a todos por tão precioso presente.

  3. Luis Moreira says:

    Prof. a Maria é uma maravilha…

  4. Carlos Loures says:

    Belíssimo texto. Um grande e fraterno abraço.

  5. Raul Iturra says:

    Agradeço os comentários e a vossa paciência para ler! Mi texto. O da Maria é tão querido!, agradeço O do Luís, a frase que quase sei de cor e salteado! E carlos, agradeço: um comentário de um escritor é um luvor para mim!
    Obrigado
    RI