Paulo Varela Gomes:Tentar sair disto

Para meu absoluto espanto, nenhuma das cartas que publiquei aqui, sejam aquelas que enviei da Índia sejam estas, teve o eco da “Declaração” de 23 de Outubro último. Nunca tinha vindo tanta gente falar comigo e nunca recebi tantas mensagens. Quase todos os meus correspondentes, pessoas da chamada classe média como eu próprio, estão muito zangados e dispostos a resistir à política que o Governo vai impor. Percebem que a situação financeira é grave mas sentem que a solução governamental é mal-intencionada ou está errada e que as suas vidas e a economia portuguesa vão ficar destroçadas para coisa nenhuma.

Estas pessoas não sabem o que fazer. Desde logo, não se revêem nos sindicatos ou nos partidos e não confiam neles. “É tudo a mesma coisa”, dizem. Não vêem outras alternativas. Desesperam. Vejo também muita gente que ainda não percebeu o que vai suceder ou gente que, percebendo, não acredita que “eles”, os governantes, sendo preguiçosos, corruptos e incompetentes, consigam levar a sua avante. Vejo finalmente pessoas que pensam que escaparão mais uma vez às dívidas e ao fisco, enganarão o Estado e os patrões, com ou sem “arranjinhos”, um 3.º ou 4.º empregos, recibos não passados, declarações falsas. Também esta gente não vê como sair disto, limita-se a vergar a espinha e aguentar o melhor que pode e sabe.

Impressiona-me, mas não me espanta, que a oposição à maioria PS/PSD seja metida no mesmo saco que esta. De facto, o que é a oposição? O CDS já esteve no poder algumas vezes. A esquerda parlamentar tornou-se a esquerda mansa e respeitável das “alternativas” e das “propostas”, talvez convencida de que, parecendo ter “soluções”, ganha votos, e de que esses votos a aproximam um centímetro que seja do poder. É uma esquerda que acabou por ficar tão identificada com o regime que parece ter-se esquecido de que o seu lugar tradicional é na rua, e a sua atitude histórica é a do confronto. Ao pensar nisto tudo, lembro-me do bloqueio, em 1994, da Ponte 25 de Abril, que nenhum partido organizou e contribuiu decisivamente para fazer cair o segundo governo maioritário de Cavaco Silva. Vejo na televisão a luta que se desenrola nas ruas, estradas e fábricas de França e recordo que em Maio de 1968 os operários entraram a certa altura na refrega desencadeada pelos estudantes e que, com o país inteiro a ferro e fogo, o Presidente De Gaulle se refugiou numa base militar a partir da qual foi obrigado a negociar verdadeiros compromissos, percebendo que tinha pela frente a França de 1789 ou de 1848, a França que gosta de demonstrar de vez em quando que a democracia também pode exercer-se pela desobediência cívica.

Sou um cidadão tão zangado como muitos outros. Sei que só colectivamente, por meios que têm que ser inventados por todos, se pode tentar impedir os governos da União Europeia de darem cabo do que resta da economia portuguesa e das nossas vidas. No que a estas Cartas diz respeito, regresso na próxima semana ao género de assuntos para os quais foram inventadas.

Paulo Varela Gomes no Público

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