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Reunimos durante quatro dias no Palácio Presidencial com Agostinho Neto, o então primeiro-ministro, Lopo do Nascimento e o então ministro dos Negócios Estrangeiros, José Eduardo dos Santos. A reunião, que tinha uma enorme cobertura mediática internacional, começou com o pé esquerdo.
António Macedo que antes de partir para Angola se encontrara como o presidente Ramalho Eanes, transmitira a Agostinho Neto um convite do presidente português para visitar Portugal.
Tal convite não era oficial, não existiam relações diplomáticas entre os dois países e não fazia parte da agenda socialista. Nem o Tito de Morais nem eu tínhamos sido avisados, nem sabíamos que antes de partir para Angola, António Macedo se tinha encontrado com o presidente português. Naquela altura, dada a grande hostilidade que certos sectores, sobretudo entre os retornados, sentiam pelo MPLA um tal convite era altamente inconveniente para o PS. Acontece que logo no início das conversações, após as boas-vindas de Agostinho Neto, António Macedo, a quem cabia também falar em primeiro lugar em nome da delegação do PS, transmitiu o convite do Presidente da República Portuguesa ao presidente de Angola. Tito de Morais e eu ficámos de boca aberta, enquanto Agostinho Neto agradecia sensibilizado. E logo nessa manhã o MPLA transmitiria o mesmo à comunicação social, para grande embaraço do Governo Português. As reacções e críticas em Portugal não se fizeram esperar. A notícia caíra como uma bomba e o presidente Eanes não perdeu tempo retirando o tapete a António Macedo e negando ter enviado qualquer convite. Com a elegância que faltou então ao PR português, Agostinho Neto acabaria por tranquilizar António Macedo que, tendo sido portador do convite o não soubera transmitir no estilo «farisaico» a que os políticos portugueses estão habituados, dizendo-lhe para se não preocupar com o assunto e que ele próprio daria a volta à questão. E assim fez, dizendo à imprensa que se não tratara de um convite mas sim de meras saudações «do Presidente da República e do presidente da Assembleia da República», acrescentando em privado que «o presidente português poderá ter sofrido pressões mas nós acreditamos, contudo, no convite. O resto são conveniências políticas, podendo mesmo ter havido interferências de países estrangeiros».
As delegações do PS e do MPLA manifestar-se-iam ainda «positivamente sobre o estabelecimento das relações diplomáticas entre a República Portuguesa e a República Popular de Angola [recomendando] aos respectivos governos de encetarem, dentro do mais curto prazo, as diligências necessárias tendentes à materialização das relações diplomáticas ao nível de Embaixada».
Também seria referida pelo PS «a necessidade de se considerarem os interesses e os aspectos humanos dos portugueses que se encontram em Angola e dos angolanos que estão em Portugal», tendo a delegação do MPLA assegurado «à delegação do PS que apreciará devidamente as perspectivas de cooperação sugeridas, de acordo com os interesses legítimos de ambas as partes».
Quem não gostou muito deste encontro e, sobretudo, do comunicado conjunto foi o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Medeiros Ferreira, que considerou a visita da delegação do PS uma ingerência na acção governamental e um autêntico acto de diplomacia paralela. Mário Soares, que se considerava, de facto, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, classificaria o «protesto» de Medeiros Ferreira como um acto de arrogância propulsionado pelos diplomatas das Necessidades e aconselhou o ministro a impor-se-lhes, a preparar o encontro com José Eduardo dos Santos, ou então a «preparar as malas». Medeiros Ferreira encontrar-se-ia com José Eduardo dos Santos na cidade da Praia, a 30 de Setembro. Só que aqui começaria porventura a primeira de uma série de demissões do Governo e do Partido, que chegaria a ser preocupante.
Quando a façanha se repetiu, um ano depois, com uma nova viagem de António Macedo e Manuel Alegre àquele país, foi a gota de água, pedindo a sua demissão do Governo e do Partido Socialista. Mas Medeiros Ferreira não tinha razão para se demitir por causa desta visita em que nada de concreto seria abordado. Não se poderia queixar de diplomacia paralela visto que o comunicado então emitido, além de banal e pouco concreto, só era assinado por Manuel Alegre pelo PS e por um membro do «bureau» político do MPLA.
Ao contrário do que acontecera um ano antes, quando do primeiro encontro, Agostinho Neto não assinaria o comunicado que se limitava a sublinhar «a necessidade de cooperação no domínio dos meios de comunicação social, tendo em vista a melhoria de informação acerca da realidade de cada país, e a urgência de, por uma informação objectiva e verdadeira, combater e neutralizar os que, pela mentira e pela deformação dos factos procuram dificultar as relações de amizade entre os dois Povos».
Revelava, isso sim, a opinião que os angolanos faziam da liberdade de imprensa. Mas, para além da importância de estas terem sido as primeiras «missões» que visavam uma substancial melhoria das relações entre Portugal e Angola e a possível recuperação dos nossos legítimos interesses, o mais importante seriam as conversas particulares com o presidente Agostinho Neto. Revelavam claramente o seu desejo de libertar o seu País da total dependência da União Soviética e a clara percepção de que essa «libertação» passaria pelo Ocidente.
No final da reunião e após aprovado o comunicado final que recomendava o restabelecimento de relações diplomáticas, Neto concluiria a reunião com algumas palavras que, acredito, eram para consumo interno. Diria nomeadamente «que embora tenhamos feito a mais longa guerra de Africanos contra o colonialismo (a qual implicou muitos sacrifícios) combatemos o colonialismo, fascismo e exploração e, hoje, que ambos somos livres, devemos estabelecer laços a todos os níveis. Houve dificuldades com o processo de libertação angolano que se travou a vários níveis e nem sempre a posição dos políticos portugueses foi clara. Acreditavámos que os progressistas dariam todo o seu apoio ao MPLA mas isso não aconteceu e assim o nosso povo ficou traumatizado. O facto de Portugal não ter logo reconhecido Angola. Foi quase o último a fazê-lo. Isso provocou certa resistência às relações com Portugal. Depois, a vossa imprensa foi extremamente insultuosa, pois nós não temos a vossa concepção sobre a liberdade de imprensa. Agora que o PS assumiu o poder em Portugal, devo ser sincero, nem sempre estivemos de acordo com o PS. Houve momentos em que o PS não acreditou no nosso patriotismo e na nossa vontade, de não alinhamento…
Agora surgiu outra situação e como disse Mário Soares é preciso pôr uma pedra sobre o passado e como tal vamos cooperar. Se o PS dinamizar este processo de normalização nós seremos gratos, pois há muitos problemas de toda a ordem em que nos podem ajudar. De qualquer modo houve sempre laços de amizade com Portugal que poderá em Angola ter um lugar privilegiado. O PS tem simpatia de vários partidos Socialistas na Europa. Naturalmente podeis contribuir para que o nosso problema possa ser compreendido. Talvez esses partidos socialistas possam apoiar a nossa candidatura à ONU.
Vocês podem colaborar nisso. Os EU dominam a cena mundial e poderão opor-se com apoio da América Latina à entrada de Angola na ONU. No entanto, não sei se isto poderá ser ultrapassado. Estou a solicitar o apoio do PS para a nossa entrada na ONU e para obter apoio de outros partidos socialistas para a nossa entrada. Nós preferimos o nível mais elevado entre os dois países. Não achei bem começar só a nível de consulados.
«Com um nível mais elevado será melhor para a resolução dos muitos problemas a tratar entre os nossos países .
Depois de tecer várias e longas considerações sobre o regime angolano e sobre a presença dos soviéticos, dizendo que «temos desenvolvido relações com países socialistas e temos aqui técnicos de todos esses países, mas não há nenhum deles que possa dizer que dirige. São conselheiros e quem toma as decisões somos nós. Assim gostaria que os portugueses o compreendessem. Mesmo certos progressistas de Portugal e Angola ainda não compreenderam bem a nossa atitude, o nosso processo. Queria propor o seguinte passo: a efectivação das relações com Angola deverá ser feita a nível do governo, por exemplo através de uma nota oficiosa. Pelo nosso lado a posição está tomada.. . Agora os governos devem tomar iniciativa. Há protocolos a fazer, etc. Nós temos os nossos refugiados em más condições. Há portugueses aqui, sem representante que defenda os seus interesses… Sabemos que isto não é fácil de fazer. Ao mesmo tempo que há boa vontade entre os nossos dois partidos, há más vontades de
outros. Há forças que fazem tudo para que as relações deteriorem e não melhorem.
Temos que fazer tudo contra essas forças para aumentar a cooperação. E esse o nosso desejo. A imprensa portuguesa às vezes diz ser eu o único amigo de Portugal e isso não é verdade»!
Contudo, no final do jantar que nos ofereceria na sua residência, chamou-me de lado e fez-me uma série de perguntas sobre a Internacional Socialista e sobre a situação internacional. Estava preocupado com a imagem do seu país e pretendia colaborar com os partidos da IS. Eu disse-lhe que a impressão de que Angola tinha caído na esfera soviética era má para Angola e que a maior parte dos partidos da IS teriam sempre dificuldades de cooperar com Angola enquanto essa ideia subsistisse. Disse-me então que essa escolha não era sua. Que a descolonização tivera lugar num momento difícil e que as potências ocidentais, à falta de um interlocutor português, tinham demorado demasiado tempo em aceitar o MPLA. Ele estava consciente da situação, contudo, e pretendia reduzir a influência dos Países de Leste em Angola.
Mas para isso era essencial que a Grã-Bretanha, a RFA e os EUA rapidamente estabelecessem relações diplomáticas com Angola. Disse-me ser esse o seu desejo e que embora tivesse consciência de que nem todos em Angola pretendiam tal evolução, ele depositava grandes esperanças nos resultados práticos desta primeira visita. Pediu-me para tratar este assunto com o máximo dos cuidados.
Quando regressei a Portugal havia um enorme interesse das principais embaixadas em conhecer pormenores da visita. O embaixador Kalinin da União Soviética convidar-me-ia para um almoço a fim de conhecer «pormenores» da visita do PS a Luanda e, curiosamente, os restantes convidados para esse almoço eram os embaixadores da RDA e da Checoslováquia. No dia 6, Mário Soares e eu analisámos, na sua casa de Nafarros, os pormenores da visita e a minha convicção de que ele pretendia desesperadamente encontrar alternativas ocidentais. Soares telefonaria imediatamente a Carlucci e no dia seguinte teria um longo encontro com ele. No dia 13, Helmut Schmidt enviaria a Lisboa um colaborador seu e no dia 26 daria a mesma mensagem ao então já primeiro-ministro James Callaghan, num encontro em Blackpool, durante o Congresso Anual do Partido Trabalhista. A acção ocidental não correspondeu, contudo, com a necessária celeridade ao apelo do presidente Agostinho Neto que, em Maio de 1977, seria alvo de uma tentativa de golpe liderado por Nito Alves, da facção pró-soviética do MPLA e, pouco depois, enquanto de visita a Moscovo, seria submetido a uma inesperada intervenção cirúrgica. Viria a falecer em condições nunca totalmente explicadas na União Soviética no dia 10 de Setembro de 1979. Mas, quando a minha conversa teve lugar com Frank Carlucci, já a CIA estava bem entrincheirada em Angola e pretendia expulsar a influência soviética pela força e não dialogar com o MPLA.
O apelo de Neto não mereceria credibilidade e o presidente da UNITA, que em matéria de relações internacionais tinha uma visão moderna e bem actualizada, já entretanto garantira o apoio de um dos mais importantes grupos de relações públicas da capital norte-americana.
A CIA, por sua vez, em 1976 já dispunha de oitenta e três agentes na Angolan Task Force no terreno, num plano de estreita cooperação com a Africa do Sul «e com os Chineses, que apoiariam a UNITA e a FNLA na sua luta contra os Soviéticos, a quem disputavam o aumento de influência em Africa».
Da parte de Portugal e do I Governo Constitucional também a política africana nunca acertaria. Depois de um traumático processo de descolonização que deixaria muito a desejar, também o I e o II Governos Constitucionais não conseguiram unir os Portugueses numa plataforma adequada à defesa dos interesses nacionais. Marcello
Caetano não soube ou não foi capaz de reconhecer esses interesses atempadamente, indo contra o que era lógico e contra os ventos da mudança. O Movimento das Forças Armadas, numa tentativa de apagar as suas derrotas militares em África, pretendeu confundir-se com os Movimentos de Libertação, demitindo-se das suas responsabilidades na descolonização. O PCP, imbuído na sua cruzada internacionalista, tinha como tarefa prioritária facilitar a penetração da União Soviética em África. Lamentavelmente, o PS e o PPD estavam demasiado envolvidos numa retórica quezilenta para então poderem compreender o significado de pactos de regime. Como a história aliás
se encarregaria de demonstrar, o primeiro-ministro permanecia em 1976 perfeitamente insensível às questões africanas preferindo adoptar os pontos de vista da CIA sobre Angola a tentar convencer os EUA a alterar a sua posição em relação ao MPLA.
Assim, apostaria demasiado em Jonas Savimbi, nunca estabeleceria uma relação correcta com o MPLA e seguiria sempre as teses da estratégia global norte-americana que estiveram erradas desde o início da descolonização Portuguesa.
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