Pode um gramonofe fazer um post?
Pode uma coisa que não existe dar num post?
A palavra não me sai da cabeça, desde que a vi e li (e reli) pela primeira vez na página 100 (mas que pontaria) de Os Funerais da Mamã Grande (1962) de Gabriel García Márquez, numa tradução de Luís Nazaré e com revisão de Susana Baeta, Dom Quixote.
– Vamos lá, sê honesta com os leitores do Aventar… Sabes muito bem que foi apenas uma troca de letras. A revisora deixou passar «gramofone» não, enganei-me, «gramonofe» por «gramofone»:
Arriscou-se a olhá-la no instante em que dava corda ao gramonofe. (…) Dava corda ao gramofone, mas a sua vida estava fixa nele.
Um autor e o leitor deviam pedir uma indemnização por cada letra fora do seu lugar!
Mais à frente, agora mais atenta às pedras do caminho, outra calinada (página 106):
– Há missa? – perguntou-lhe.
– Há sim – disse a mulher. – Mas é como se não houvesse, porque não vai ninguém. É que não quiseram mandar para aqui um padre novo.
-E que tem o que cá está?
– O que há é quase cem anos e está meio maluco. (…)
Quando uma palavra que não existe por via de letras trocadas não nos sai da cabeça, do ouvido… A desordem incomoda, é dissonante, perturbadora, feia. A desordem é um disco riscado. Mas a omissão da(s) palavra(s) certa incomoda muito mais. Como terá escrito G.G. Márquez?
Está uma pessoa a tentar cultivar-se, maravilhada a ler um texto a tanger o sublime, e tropeça em pedregulhos do tamanho da indignação e da indigestão.
Já agora reclamamos indemnização para Gabriel G. M. e seus leitores!
Será pior quando começarem a vir “mais leves de letras” que é como quem diz “acordizados” (nem carne nem peixe).
Nesse caso já não serão pedregulhos deixados ao acaso no meio do texto – serão antes abismos e florestas impenetráveis!
Fico sempre grato a quem exerce o direito à indignação que eu também cultivo.