AUTARQUIA


Thomas More (1478-1535), por Hans Holbein, o Jovem (1527)

Permitam-me, senhores leitores do Aventar, que sinta uma imensa alegria ao pensar na ideia e na actividade de sermos livres, de não sermos governados por ninguém, excepto por nos próprios, até onde a nossa inteligência e vontade o permitirem.
Escrever esta frase, coloca a minha pessoa e ideais em sérios apertos. O primeiro é entender de que governo falo: de um Estado, de uma Nação, de um grupo, ou de mim próprio? Se a palavra, como me lembro é derivada do grego (1), autarquia é esse sonho que nasceu em 1785, antes da Revolução francesa. Os já quase cidadãos igualitários estavam fartos de serem comandados por poderes absolutos (2). Todos mandavam sobre eles, restando-lhes submeterem-se, serem punidos ou serem afastados do poder.
Ai de quem não satisfizesse esse desejo. Foi em 1516, que um igual ao monarca, um par, Tomás Moro, farto que a família Tudor explorasse o povo, escreveu um pequeno livro de 141 páginas, para descrever as formas de mandar na Ilha Utopia, sítio isolado e bem abastecido onde todos eram iguais e deliberavam em grupo antes de tomarem uma decisão. Utopia tem como significado mais comum a ideia de civilização ideal, imaginária, fantástica. Pode referir-se a uma cidade ou a um mundo, sendo possível tanto no futuro, quanto no presente. A palavra foi composta a partir dos radicais gregos οὐ, “não” e τόπος, “lugar”, portanto, o “não-lugar” ou “lugar que não existe”.
Utopia é um termo inventado por Thomas More que serviu de título a uma das suas obras escritas em latim, por volta de 1516. Segundo a versão de vários historiadores, More fascinou-se pelas narrações extraordinárias de Américo Vespucio sobre a, então, recente avistada ilha de Fernando de Noronha, em 1503. Assim, More, decidiu escrever sobre um lugar novo e puro onde existiria uma sociedade perfeita.
O utopismo consiste na ideia de idealizar não apenas um lugar, mas uma vida, um futuro, ou qualquer outro tipo de coisa, numa visão fantasiosa e normalmente contrária ao mundo real. O utópico é um modo não só absurdamente optimista, mas também irreal de ver as coisas do jeito que gostaríamos que elas fossem.
O monarca reinante, Henrique Tudor, tinha um capricho: casar com a mulher dos seus amores, Ana Bolena. Para tal, devia-se divorciar da sua primeira mulher, Catalina de Aragão, mais velha que ele. Ao ler Utopia, Tomas Moro ou, o seu real nome em Inglês, Sir Thomas More, parecia o homem ideal por ser justo e sábio – como, no seu livro parecia ser na Corte Tudor: trato igual dado aos subalternos -, e porque conhecia a lei. Sem hesitar, este Henrique Tudor ou VIII, nomeou-o Chanceler, estratégia para lidar com uma potência estrangeira, o Vaticano, de onde emergiam as ordens para a conduta social. Especialmente, em matéria de salvação das almas. Um matrimónio católico, como o dele, se fosse desfeito acabava por pôr em risco as almas, condenando-as ao inferno.
Mas, como dizem por ai, a paixão é uma força da natureza. Era essa força que não permitia a El-rei pensar, mas sim ao seu Ministro, que sabia que a imparcialidade residia na organização do comportamento, como era definido pela divindade que tudo via, ouvia, mandava, punia ou louvava . O medo a essa divindade, obrigava os seres humanos a tomar imenso cuidado. O cuidado era tanto, que dava um aspecto distante e sem compromisso.

Thomas More (1478-1535) por Hans Holbein, o Jovem (1527).
É o que se espera de quem administra justiça e procura a Autarquia na sua ilha de vida. More, não foi bem sucedido e El-rei mandou-o matar.
Como nada conseguia com os seus Chanceleres, afastou-os a todos do poder, passou a ser chefe da Igreja, auto decretou o seu divórcio e outros em sucessão, até que já velho e sete vezes casado e divorciado, a sua autarquia o fulminou (3).
O que o povo procurava era uma governação em conjunto, uma utopia. Serão os nossos iminentes novos autarcas como Henrique VIII ou como Sir Thomas More? O que quer o povo para esta parte da sua soberania? O povo deve decidir.

(1) Autarquia (do Grego αuταρχία, composto de αuτός (si mesmo) e αρχω (comandar), ou seja, “comandar a si mesmo” ou “auto comandar-se”) é um conceito pertinente a vários níveis, mas sempre lidando com a ideia geral de algo que exerce poder sobre si mesmo. Fonte: FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Editora Nova Fronteira, 1996, pág. 201;Constituição da República Portuguesa, Título VIII – Poder Local.

(2) Poder absoluto, conforme os historiadores, é orientar o comportamento de um povo sem limites de lei ou de outras pessoas que dêem conselhos sobre o que fazer. É um poder que fica entregue nas ideias e nas mãos do que melhor entenda. A consequência é o pânico que causa entre os subalternos que devem estar sempre a divertir a quem manda sem freio nem receio de vingança.

(3) Em Filosofia, o conceito de autarquia significa poder sobre si mesmo. Define-se também como o governo de um Estado regido pelos seus concidadãos.
Dos vocabulários estóico e cínico pode-se dizer que é a condição de auto-suficiência do sábio, a quem basta ser virtuoso para ser feliz.
Em relação ao conhecimento, ao contrário de Platão, Antístenes rejeitava os valores dos universais.
O filósofo afirmava que só existem essências individuais das coisas, e cada uma delas se conhece por meio de uma intuição indivisível.
Ainda segundo Antístenes: (sic) …é possível comparar as coisas, mas não estabelecer julgamentos ou definir atributos a seu respeito, pois isso corresponde a misturar essências distintas. O resultado é uma renúncia ao saber: só é necessário conhecer aquilo de que se precisa para viver…Fonte: as minhas ideias, as minhas leituras de Utopia e SILVA, de Plácido e. Vocabulário Jurídico, 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pág. 100.

Comments

  1. maria monteiro says:

    O ano passado ofereci ao meu amigo Pe RicardoF, também ele doutor em leis, o DVD “Thomas More a man for all seasons”

  2. Carlos Ruão says:

    Ora aqui está uma vertente que eu, particularmente, gostaria de ver mais presente no Aventar. Muito bem vinda!Não obstante, meu caro Raul, permita-me duas precisões: 1. A «Utopia» de Thomas Morus, ou melhor, o «De Optimo Reipublicae Statu Deque Nova Insula Utopia» é – tal como o «A Cidade do Sol» de Tomas Capanella – uma tentativa de adaptar ao mundo moderno, à «renascità», o modelo da «República» de Platão e, neste sentido, um exercício de estilo que caracteriza toda a filosofia e pensamento humanista quinhentista. Desta forma, é sempre perigoso interpretar um momento histórico, ainda para mais de natureza especulativa, à luz das nossas inquietações actuais. De facto, como afirmou Yvon Belaval este «discurso sobre o melhor estado da república», «mais do que um manifesto revolucionário, é um entretenimento de humanista». 2. O «sonho» do português Rafael Hitlodeu, que aqui é o alter-ego do próprio autor, foi na realidade engendrado a partir das parcas informações sobre a descoberta do Novo Mundo, dos relatos de «literatura de viagens» e do êxtase que o período das descobertas despoletou na imaginação do pensamento europeu. Não obstante existir, de facto e de razão, uma crítica aos regimes políticos e sociais da época – aliás como o amigo Erasmo de Roterdão fez em «Elogio da Loucura» – a «utopia» de morus não pretende nem pretendeu ser uma alternativa-outra a qualquer modelo sócio-político como por exemplo o foram as teorias oitocentistas. À época, estas preocupações encontram-se, de facto, num outro tipo de escritos dos quais o mais conhecido é o «Príncipe» de Maquiavel. (parágrafo)… se todos fossemos obrigados a ler e a entender os três textos aqui indicados certamente o mundo seria muito melhor !… mas ninguém quer saber…Meu caro, partilho do seu sonho, mas como bem sabe o conceito de utopia pressupõe o ilimitado e por isso mesmo existe um senão: o homem em si mesmo !

  3. Luis Moreira says:

    Carlos, o teu comentário é um excelente texto.Converte-o em poste, já que não consegues converter-me a mim.:-)

  4. Luis Moreira says:

    Carlos, o teu comentário é um excelente texto.Converte-o em poste, já que não consegues converter-me a mim.:-)Maria, esse é um dos melhores filmes que vi na vida. “A man for all seasons”, vi-o no cinema da praça do Chile que já não existe.

  5. Raul Iturra says:

    Meu Caro Carlos Ruão, muito obrigado!O seu caomentário é um texto que parece ser o katarse de uma aula minha! Poupei várias ideias por causa dos leitores. Nem sempre Erasmo e Morus são entendidos, ainda menos Niccolo di Machiavelli: que pretendia o que ele denomina a bondade do Principe que se manifesta na sabedoria do governo dos sujeitos ou subditos. Comentar Erasmo, desconfiei que os nossos autarcas, um deles o meu antigo discente em Lisboa, ao abandonar Cambridge onde todo estava feito e em Porto Gallo, tudo para se fazer, discente que anda bem longe de ser humanista. A minha pretensão era apenas acordar aos Autarcas- bem sabemos que há dois siginificados-para esse o seu dever de ensinar. Como o meu Caro Carlos, procuro a Utopia da Morus, como pode ver nos meus livros, especialmente no de 2002, Afrontamento: a economia deriva da religião. Tomás de Aquino foi a minha base, como Erasmo de Rotteradam que soube pacificar protestantes-a palavra está usada no seu sentido real:os que não queriam ter homens de fé e vender o céu-eu não sou um deses, eis porque a minha hipótese central na minha pesquisa como Etnopsicológo é que a religião é a lógica da cultura, como escrevi num livro coelctivo de 2004, Afrontamento: ou porque nada têm e criam uma divindade, como dizem Jenny e Karl Marx em 1848, ou por terem muito e mudar a lógica do comportamento que em público é de joelhos, mas em privado são aas escutas, o tal banco que não lembro o nomem, ou a procura-si, a procura do poder e a gloria, como diz Graham Greene em 1940. Ele era católico e um grande crítico: teve que fugir ao México. Erasmus, da confissão romana, soube pacificar. Tive a honra de habitar o seu quarto na minha Universidade UK:nem dormir consguia ao começo, pelo respeito de tão magno predecessor. Faz bem em nós lemrar Luís Moreira que Thomas moore ou Morus, era um homem para todos os tempos.Agradeço o comentário, Caro Carlos: acrescenta ideias ao meu texto, escrito com ironia por causa do comportamento dos concelhais, que nem autarcas devem ser denominados..No envio as minhas coordenadas por ser este um espaço público e precisso recuperar de uma doença que mata. Mas os gestores de Aventar podem-lhe proporcionar, excepto entre 13 e 15:ordem médica. Utopia será sempre o meu Norte. ObrigadoRIlautaro@netcabo.pt gostava falar mais consigo: estou a escrever a biofragia dos Marx: devoto luterano KHM e católica fervorosa Johanna von Westphalen, a sua mulher, sem essas ideias e a escrita de Jenny, não haveria Manifesto Comunista….

  6. Daniela Major says:

    Ah…A minha personagem histórica preferida. Não li a Utopia porque comecei ao contrário e estou ás aranhas com o Dialogue of Comfort against Tribulation. More era um homem muito complexo e é provavelmente essa a razão pela qual gosto dele. Sou da opinião que é das personagens mais ricas e complexas da História de Inglaterra, embora eu seja uma leiga nestes assuntos. O filme e a peça, que já aqui foram referidos, “a man for all seasons”, representam um certo anacronismo, especialmente do ponto de vista de certos historiadores. Depois de ter sido santificado e depois do filme alcançar o sucesso que alcançou, devendo muito desse sucesso aos seus actores, alguns historiadores “revoltaram-se” e tentaram fazer com que o mundo percebesse que More não era, na realidade, um santo. Richard Marius e Jasper Ridley são dos mais conhecidos. A biografia de Marius alcançou um grande sucesso mesmo entre os grandes estudiosos da Época Tudors. O problema de More era o facto de ser excessivamente religioso. Ou seja, ele é uma personagem cujas acções e atitudes podem e levam facilmente a interpretações erradas ou pelo menos precipitadas. O facto de ter perseguido protestantes quando era Lord Chancellor e de ter mandado para a fogueira penso que seis protestantes, entre os quais W. Tyndale, o homem que traduziu a Bíblia para inglês, o facto de usar um cilicio e outras formas de auto-flagelação, e por fim o facto de ter um humor sarcástico e de ser um homem com wit como os ingleses dizem, leva a que se façam julgamentos sobre este homem usando conceitos e ideias que hoje em dia partilhamos mas que More, por muito visionário que tenha sido, nunca os poderia partilhar. Richard Marius chegou a pôr em causa o Humanismo de More, e Ridley chamou-lhe um pervertido masoquista. Tudo isto para dizer que é interessante verificar que More era um mar de contradições, embora pessoalmente eu ache que apesar de não ser um Santo, foi um verdadeiro “herói da consciência” ou “a man for all seasons”. Era pelo menos um homem honesto numa Corte corrupta. Aliás o próprio retrato dele, por Holbein, que está representado no post, é contraditório. Ele aparenta ter olhos castanhos quando Erasmus, na discrição que faz dele, diz que os olhos são azuis-cinza. Sempre é mais bonito que castanho. 😀

  7. Raul Iturra says:

    Agradeço todos estes comentarios. Ajudam a continuar a pesquisa para Aventar. Parecem-me bem não apenas os comentarios, bem como Aventar ser o unico blogue que não tem uado um texto escrito por mim na Página da Educação, na que colaboro mais de 15 anos. Essa carta endereçada a Ministra da Educação, que dia sim dia não, torna a aparecer. Os leitores têm esquecido que o texto é uma crítica para quem trabalha em educação, como eu, e que começa: Querida Maria de Lurdes, com firmeza mas com respeito. A palavra respeito foi esquecida e os leitores apenas se lembram da palavra firmeza. Parece-me mal, especialmente porque ela fez como entendia. Não concordo, mas era com boa intenção que mandou o que mandou. Não acredito que entenda, não é a sua área. Mas não se faz troça da árvore que não consigiu arrebitar. Aliás, dirigir a Educação em Portugal é um grave problema:as crianças vivem como adultos e estão sempre cansadas e muitos docentes não sabem explicar. Quem fez mal foi quem a escolheu para o cargo. Poucos educadores conheço eu que saibam ensinar: Afonso Augusto da Costa, antes dele João de Deus, Maria Luiza Cortesão, Afonso Costa neto e Ricardo Vieira, Rómulo de Carvalho, Bento se Jesús Caraças, Nuno Crato, José Gil, Augusto França,entre outros. Não se deve bater em árvore derrubada. Criticar no momento, é um dever, mas não ter imaginação para Reformas, é um delito, uma felonia. Especialmente se a docència é a saida para muitos que, como digo em vários livros meus, ensinam a partir do texto que o estudante deve ler. A vida não são férias nem ironias. Vejam só o essempleo que vingou em pçena ditadura: Veiga Simão.Raúl Iturra, lautaro@netcabo.pt

  8. Raul Iturra says:

    Adenda-Nunca sabemos ser justos. Não queria injustiçar nenhum bom educador, e estava a esquecer aos especialistas em Educação Especial. Para que os leitores saibam, tive o imenso prazer de partilhat ideias com a criadora de Educação especial em Portugal, Ana Maria Toscano de Bénard da Costa, e com os meus queridos orientandos em Educação Especial: José Manuel Pombeiro Cravo Filipe, Elsa Cristina Fereira de Figueiredo e outros. Excelentes investigadores antes de ensinar uma parte difícil da Educação. E calo, para não pecar…Foi um prazer, e o é ainda, trabalhat com eles: calma, paciência, bom entendimento, serenidade, como se for aprendida do Telmo Caria e Orlanda Maria Oliveira. CaloRaúl Iturralautaro@netcabo.pt

  9. maria monteiro says:

    O cinema era o Império (aquele que virou IURD…)?

  10. Carlos Ruão says:

    …e, vejam lá, nem se falou do grande Montaigne ou do nosso Damião de Góis…… há pano para mangas, meus senhores !… venham daí esses textos que eu cá por mim dou a minha contribuição (sem pagamento de indulgências, está bem de ver)…. disponha Raul !… como eu o entendo Luís, mas na minha natureza ecoam os ditirambos de Schopenhauer, Novalis ou F. Schlegel (e já agora do nosso Antero); está-me no sangue, que posso eu fazer ! os Beckett e as Muller deste mundo trataram da minha educação e apenas evito o «monstro ducassiano» porque ainda tenho um pingo de humanidade nesta consciência prenhe e nunca parida 🙂

  11. Luis Moreira says:

    Eu, caro Carlos, é que não o entendo, mas deve ter razão…

  12. Luis Moreira says:

    Maria, não era esse não, era um outro que havia na rua Cavaleiro de Oliveira.

  13. Carlos Ruão says:

    … perdoe-me, caro Luís, a pessoalização. … era apenas um «exagerado exercício de estilo» acerca da incapacidade de conversão pela utopia pois sou muito mais dado a «distopias» … daí as referências. … fui movido pelas marés de assuntos que me são particularmente caros…. daí a excitação…. devo ser mais brando nos comentários ou talvez mesmo ousar não os fazer (deformação profissional … ?)