O HOMEM SEM NOME
Quando nasceu
trazia entranhados em si dois grandes pecados
o pecado original
e o pecado de ter sido gerado em mãe solteira.
Para além disso
fora parido quase moribundo.
Imagine-se o terror de sua mãe
que já o via a arder no fogo do inferno.
O pai
mais racional
não tinha assim tão maus pressentimentos.
Para ele
Deus não seria capaz de condenar
– e logo com penas eternas –
um ser indefeso
pelo facto de a pia baptismal
distar três quilómetros
do local de nascimento.
Pegaram na mulher mais à mão
e no homem mais ao pé
embrulharam num cueiro
aquele escarro de gente
e correram a sete fôlegos em direcção à igreja.
Ambos conheciam a gravidade do pecado original.
As almas dos que morrem em pecado mortal
ou apenas de pecado original
descem ao inferno
anunciava o Concílio de Florença em 1439.
Todos sabiam
que o baptismo era a única terapêutica
que salvava e apagava o pecado original.
Se chegasse à pia com vida
não seria este pecado
marca da infâmia dos seus longínquos antepassados
que o levaria à condenação eterna.
Quanto ao outro
o pecado de amor
o pecado de sua mãe
nada constava na tradição
que o considerasse
passaporte directo para as profundas
embora fosse exactamente igual ao primeiro
mas muito mais recente.
No mínimo
em cima do outro
agravaria
certamente
a sentença divina.
Portanto
as perspectivas não eram animadoras
nesta correria para a salvação.
Nada mais dominava o pensamento
dos hipotéticos padrinhos
– assim o permitisse serem-no
efectivamente
a graça divina –
senão o terror.
Já com alguma idade
esse esperançoso par lembrava-se de ter ouvido
da boca de um padre velhinho
de quem se dizia ser pai de onze filhos
que um papa chamado Bento XIV
e outros seus sucedâneos
aprovaram o baptismo de fetos e abortos
bem como dos fetos de mulheres grávidas mortas
aos quais faziam chegar a água benta
através de um sifão especial
ou de uma cesariana.
O medo era tão grande
que chegaram a arranjar fórmulas especiais
para baptizar abortos ainda sem forma humana
ou mesmo aberrações
e monstruosidades
resultantes de distracções
ou falhas nos cálculos divinos.
Já a meio do caminho da igreja
os corações dos dois estafetas salvadores
quase pararam
ao sentirem que nada pulsava
naquele montinho de carne.
Apertaram-no contra o peito
e deram-lhe algumas palmadinhas suaves
não fossem acabar com o sopro de vida
em que ainda acreditavam.
Aquele minúsculo projecto
à falta de melhor resposta
reagiu com o intestinal ruído
que precede ou acompanha
uma pequena dejecção de ferrado
o que aliviou um tanto os padrinhos
embora soubessem
que esse facto não constituía
propriamente
uma manifestação de vida.
No último minuto
provavelmente já na fronteira do entroncamento
onde divergem os caminhos do céu e do inferno
o nascituro usou
pela primeira vez
as cordas vocais
soltando um pequeno gemido
que logo se fez choro convulso
ao sentir a água benta e fria na cabeça.
Crê-se
hoje
que não fora a água fria
mas o nome que pretenderam dar-lhe
a razão do seu choro
era como que voltar à estaca zero
uma espécie de “restitutio ad integrum”
do pecado original
tornando inútil toda aquela corrida
para a pia da salvação.
Os seus gritos devem ter ecoado
como ribombante trovão
para lá dos séculos
no ex-paraíso
– hoje deserto –
no lugar onde os pais da Humanidade condenada
não sabendo para o que servia
aquilo que tinham entre as pernas
pagaram com a perda da felicidade eterna
o terem-no descoberto.
Para que ele parasse de chorar
não tiveram outro remédio
senão esquecer o nome.
A força do sacramento venceu
o diabo recuou
enfiou o rabo entre as pernas
e assim ficou sem nome
o homem que não tem nome.

(adão cruz)
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