Clube dos Poetas Imortais: António Cabral (1931-2007)

 

António Cabral foi um dos maiores poetas da região de Trás-os-Montes e Alto Douro. Melhor: foi um dos maiores poetas portugueses do século XX. Não provocando o clamor mediático de um Torga, a sua poesia atingiu uma qualidade incomum e à qual, até agora, não se fez a devida justiça. Mas nem só poesia escreveu, pois da sua bibliografia constam, além de 15 colectâneas poéticas, cinco volumes de ficção e sete volumes de teatro. Para além de livros didácticos e de ensaios literários.

Publicou também obras sobre etnografia e antropologia, nomeadamente sobre jogos populares, matéria em que se tornou um grande especialista. A ele se deve ainda um dos mais belos textos escritos sobre José Afonso, «Introdução às canções de José Afonso», publicado no livro «Cantar de Novo» (Nova Realidade, 1970). Neste clube tenho incluído grandes poetas da lusofonia, alguns deles meus amigos. É o caso do António Cabral com o qual colaborei e que comigo colaborou em numerosas iniciativas. Um bom amigo e um grande escritor.

 

 

 

António Cabral nasceu em Castedo do Douro (Alijó) em 30 de Abril de 1921 e faleceu em 23 de Outubro de 2007 em Vila Real. Sacerdote católico até 1972, pediu dispensa e casou, dedicando-se ao ensino. Além de grande poeta, dramaturgo e romancista, foi um activo agente cultural, sendo co-fundador das revistas Setentrião e Tellus. Vemo-lo na fotografia com Amadeu Ferreira, o escritor e principal defensor da língua mirandesa. De António Cabral escolhi o poema Acorda amor, publicado na antologia poética «Vietname», que organizei em colaboração com Manuel Simões. Parece-me dar uma ideia do grande poeta que é o «imortal» que hoje vos apresento – Meus amigos, deixo-vos na companhia de António Cabral:

            Acorda amor

            Acorda, amor. Não ouves o silêncio

            ranger à volta da nossa casa?

            Algo se passa. As aves na palmeira

            do pátio acabam de estremecer.

            Ouço-as pelas frestas da velha parede

            e o medo volta de novo ao meu coração.

            Bem sei que não devia ter medo, que o sono

            é esse doce país cantado pelo poeta,

            onde os rios não correm somente

            para demarcar os ódios, e as nuvens

            apenas ocultam a boa água fertilizante.

            Condeno-me por isto. Por tremer

            diante dum pensamento e acordar, a teu lado,

            quando um leve sussurro atravessa a noite.

            É como se a tua presença não bastasse,

            fechando não sei que porta imaginável.

            Desculpa, amor. Mas tremo. A teu lado.

            Apesar do teu rosto amanhecente.

            Mesmo sabendo que em teu corpo

            Se abriu a corola de todas as delícias.

            Pelas frestas da velha parede,

            eis-me a interrogar a noite. Que acontece?

            Que sombras se movem além do rio?

            Talvez eu delire, ainda sob a impressão

            Do último bombardeamento. Lembras-te?

            Num momento, destruiram os favos

            da nossa alegria. E o mel de tantos anos

            barbaramente se diluiu na enxurrada infernal.

            Foi como se enorme sanguessuga de repente

            se colasse a nós. Ainda tremo .

            Tu escondeste a tua cabeça no meu peito

            e eu quando acordei sob os escombros,

            tinha uma perna destroçada. Podia ter as duas.

            Não é isso que me faz tremer. Mas recordo

            a febre dos teus lábios em minhas mãos,

            o quadro dos teus cabelos outonais

            e o corpo do nosso filho, parado, no teu regaço.

            Perdoa, amor, esta lágrima. Não acordes.

            Se eles voltarem, cobrir-te-ei com o meu corpo,

            com este corpo inútil que me deixaram.

            Não acordes, amor. Em que estrela

            bus
ca
s agora o nosso filho? Que palmeira

            o acolhe à sua benigna sombra?

            Ele põe a mão na rosa do teu seio

            e nos teus lábios ardem pétalas. Meu filho!

            Lembras-te como eu gostava de o levantar

            bem alto? Meus braços, agora débeis,

            fremiam, reverdeciam como ramos,

            e tu dizias, luminosa: o tronco e a flor.

            Era como se o dia voltasse a nascer,

            nascesse a cada instante,

            cingindo-me aos teus olhos belamente doirados.

            Era. Agora, não. Agora é noite. Prolongada.

            Não durmo. Doem-me as pálpebras e a alma.

            A paz escoa-se pelas frestas da parede.

            Que sombras se movem aquém do rio,

            fazendo ranger todo o silêncio?

            Se vierem… que venham. Dorme, amor.

            Amamenta em sossego o nosso filho.

            se vierem,

            Cobrir-te-ei com o que resta do meu corpo.

 

Comments

  1. Belo poema. Carlos, ando para aqui a pensar voltar aos meus poemas, mas depois corro o risco de colocares aqui um texto, a breve trecho. “Luis Moreira, um bom amigo e um mau poeta “

  2. O António Cabral era um poeta excepcional. O Adriano Correia de Oliveira, o Manuel Freire, o Fanhais, pelo menos estes, cantaram versos dele. Quanto a ti, venham os poemas. Não precisas de bater a bota para que eu lhes dedique um texto – crio o «Clube dos Poetas Vivos» e já está!

  3. O meu pai, que à sua maneira era um poeta (morreu a acreditar que a maioria das pessoas são decentes) dizia-me. “Quem tem amigos não morre na prisão”. Contigo nenhum corre o risco de ser apagado da memória.

  4. A poesia é um lugar estranho. Muitas vezes, os poetas, rimando ou não, não a conseguem alcançar e pessoas que não se consideram poetas dizem coisas extremamente poéticas. O poema do Adão Cruz, o de hoje, diz-nos algo ssobre a natureza profunda da poesia.

  5. Uma questão que nunca percebi é porque a “poesia” tem que ter aquele formato. Bem sei que a poesia passou por “técnicas” de escrever, mas é bem de ver que na prosa se encontra poesia de tirar o folgo.Eu quando estou a ler um livro (prosa) e não contínuo, faço uma pausa,  é de certeza a beleza da poesia que encontrei que me faz parar.

  6. A poesia não tem nenhum formato pré-determinado – podes escrevê-las «as escadinhas» ou não. É um pássaro que não quer uma gaiola de regras. Rimbaud escreveu a sua maravilhosa poesia em texto corrido. Claro, o soneto tem regras, pode ser o «italiano ou petrarquiano», com 2 estrofes de 4 versos e duas de três, pode ser o «inglês ou shkespereano», com três quartetos e um dístico, pode ser o «monostrófico»… Outros géneros poéticos têm as suas regras específicas. Mas podes escrever um soneto que respeita todas as regras do género que escolheste e nele não haver um grama de poesia. Podes violar todas as regras e criar um texto maravilhoso. Chames-lhe poesia ou não. Como perguntava Shakespeare: «O que interessa o nome da rosa?»…

  7. Pois, é isso.

  8. deolinda moutinho says:

    queria entrar em contato com minha prima chamada Zulmira, ela nasceu no Castedo do Douro, soube que ela casou se com militar e está morando nos Açores. Zulmira já esteve morando no brasi digo Rio de Janeiro . Ela me conhece com meu apelidd LINDA. Espero uma resposta queria imensamente entrar em cotacto com ela.
    Deolinda moutinho

  9. deolinda moutinho says:

    deolinda moutinho :queria entrar em contato com minha prima chamada Zulmira, ela nasceu no Castedo do Douro, soube que ela casou se com militar e está morando nos Açores. Zulmira já esteve morando no brasi digo Rio de Janeiro . Ela me conhece com meu apelidd LINDA. Espero uma resposta queria imensamente entrar em cotacto com ela.Deolinda moutinho

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